Rabo de Peixe
Faya Neto/NetflixAlbano Jerónimo e José Condessa, em 'Rabo de Peixe'
Faya Neto/Netflix

‘Rabo de Peixe’: droga, loucura e morte nos Açores

A série de Augusto Fraga para a Netflix tem uma apresentação, um aparato, uma solidez global e ambições bastante acima da média nacional.

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★★★☆☆

Quando a série Xailes Negros, realizada nos Açores por Zeca Medeiros, se estreou na RTP em 1986, houve muita gente que escreveu para a televisão estatal queixando-se de que o sotaque de alguns dos actores era muito cerrado e dizendo que os responsáveis a deviam ter legendado. Agora, com Rabo de Peixe (Netflix), assinada pelo açoriano Augusto Fraga, estamos perante uma situação inversa à de Xailes Negros: reclama-se que quase nenhum dos actores tem sotaque açoriano, o que de alguma forma afecta a autenticidade da série – pelo menos para os espectadores portugueses. 

O que parece mais digno de nota é não haver um critério bem definido para a forma como as personagens locais falam. Se algumas se expressam sem sombra de sotaque, noutras (caso da de Albano Jerónimo), o sotaque tanto lá está “em fundo”, como se esbate e desaparece, e noutras ainda, quase todas secundárias ou que têm participações fugazes, ele está presente e é cerradinho. Em Rabo de Peixe não há homogeneidade de linguagem, ela é “flutuante”, na melhor das hipóteses. 

Embora muitas vezes o diabo esteja nos detalhes, não é este que faz Rabo de Peixe ser melhor ou pior. Assentando num facto real ocorrido em 2001 na freguesia de S. Miguel em que a acção se passa (um veleiro que carregava cerca de 3 toneladas de cocaína naufragou ao largo daquela vila piscatória, a carga veio dar à costa e foi recolhida pela população, fazendo disparar a circulação e o consumo de droga na ilha, e dando origem a vários episódios caricatos), Augusto Fraga e os seus argumentistas João Tordo e Hugo Gonçalves quiseram fazer uma série para o grande público e com a capacidade de saltar fronteiras, e que se pudesse medir, em todos os aspectos, com as séries espanholas, francesas e até americanas que se vêem no streaming

Isto significa uma inevitável formatação narrativa, temática e estilística. Temos o estereótipo das personagens sem horizontes nem esperança, a quem cai subitamente no colo um maná que as poderá enriquecer e ao mesmo tempo pôr em perigo de vida; um narrador omnisciente que vai comentando os acontecimentos, o recurso por sistema a uma câmara acelerada e uma montagem frenética (Fraga é um exímio e consagrado realizador publicitário e isso nota-se por toda a parte em Rabo de Peixe), o recurso a clichés visuais que do cinema de acção pós-Tarantino, passaram para as séries de televisão e de streaming (câmara lenta, “paralíticos”, planos excêntricos como o da cocaína a entrar na corrente sanguínea e a estimular as zonas do cérebro), etc. Não faltam déjà vus na série, que não se esquece de promover a beleza natural açoriana ao mesmo tempo que desenrola a sua história de esqualidez social, crime e baixeza humana.

Dito isto, Rabo de Peixe tem uma apresentação, um aparato, uma solidez global e ambições bastante acima da média nacional. A verosimilhança tropeça aqui e acolá (e o último episódio deixa várias pontas por atar – a menos que uma segunda temporada esteja nos planos dos autores), mas a sua segurança técnica e organização dramática, fluência no contar e desenvoltura geral têm que ser relevadas. Assim como a coesão das interpretações, principais e secundárias, e a caracterização das personagens, mesmo as mais planas, exageradas ou grotescas. E o vilão chunga, escarninho e bruto como as casas de Albano Jerónimo mete a série debaixo do braço e leva-a para casa. Ainda bem que ele só sai de cena mesmo para o fim.  

Fala-se também muito mal, as personagens têm bocas de esgoto, dizem-se muitos palavrões – demais, segundo as “redes sociais” – em Rabo de Peixe. Mais uma vez, passámos do 8 para o 80. Dantes, lamentava-se que o cinema português e a ficção televisiva nacional eram muito púdicos e faltava-lhes “realismo”, porque o vernáculo era escasso ou inexistente (e as cenas de sexo poucas e desajeitadas). Agora que há uma série em que as asneiras saem em rajada, aqui-d’el-rei que só se ouvem obscenidades, e ser desbocado não significa ser “realista”. Nunca estamos contentes com nada.

Quem quiser conhecer melhor o acontecimento que está na base da série, poderá procurar o documentário #cincomilescudos (2018), das jornalistas espanholas Rebeca Queimaliños e Macarena Lozano. E os que quiserem saber como se vivia naquela localidade nos primeiros anos do nosso século tem disponível, no Filmin, outro documentário, Rabo de Peixe, que Joaquim Pinto e Nuno Leonel lá rodaram entre 1999 e 2003. Cada coisa no seu lugar. E apesar das imperfeições, lugares-comuns e infantilidades, a série de Augusto Fraga sabe e consegue estar no seu.

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