Soldado Milhões
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"Soldado Milhões": guerra de trincheiras em Alcochete

No centenário da batalha de La Lys, vestimos a farda e fomos ouvir Jorge Paixão da Costa e Gonçalo Galvão Teles, realizadores de ‘Soldado Milhões’, o primeiro filme português passado na I Guerra Mundial.

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Se exceptuarmos de curtas-metragens documentais mudas da altura, e de um bocadinho do filme João Ratão, de Jorge Brum do Canto (1940), a participação portuguesa na I Guerra Mundial não tem expressão no cinema nacional (aliás, o cinema português e a História de Portugal têm-se cruzado muito poucas vezes).

Esta semana, estreou-se aquele que é o primeiro filme sobre os portugueses na Grande Guerra, assim como um raro filme bélico nacional. Soldado Milhões, de Jorge Paixão da Costa e Gonçalo Galvão Teles, conta a história do transmontano Aníbal Augusto Milhais, que durante a batalha de La Lys, a 9 de Abril de 1918, armado com a sua metralhadora “Luisinha”, cobriu a retirada dos seus camaradas do CEP (Corpo Expedicionário Português), enfrentando sozinho sucessivas vagas de soldados alemães, antes de, dias depois, reencontrar o seu pelotão e ter salvo um médico militar escocês de morrer afogado.

O feito valeu a Milhais ser condecorado com a Torre e Espada, sendo o único soldado raso português a tê-la recebido desde a sua criação, e a alcunha de “Soldado Milhões”, dada por um superior, que disse ele chamar-se "Milhais mas valer por milhões".

Rodado em vários locais, incluindo Valongo, a aldeia natal de Milhais, e no Campo de Tiro de Alcochete, onde foram recriadas as trincheiras portuguesas de La Lys, Soldado Milhões passa-se em dois tempos: na Flandres, em 1918, entre as tropas do CEP, das quais faz parte o jovem Milhais (João Arrais), e 25 anos mais tarde, em Valongo, onde o encontramos, já com família constituída, e personificado por Miguel Borges, a perseguir um lobo que lhe mata as ovelhas, acompanhado pela filha mais nova, Adelaide.

Jorge Paixão da Costa, um dos dois autores da fita, com Gonçalo Galvão Teles, contou à Time Out como nasceu este projecto: “Ele apareceu nesta forma há cerca de 5, 6 anos. O José Jorge Letria tinha gostado de A República, uma série que fiz para a televisão e sugeriu-me que a seguir devia pensar na I Guerra Mundial. Contou-me então a história do Milhões e praticamente fez-me o filme. E depois, o António Torrado, que escreve livros infantis, disse-me que a bisneta do Milhões é a Mafalda Milhões, que tem uma livraria em Óbidos, onde conta histórias a crianças. Fui lá e ela apresentou-me alguns familiares, caso dos tios-avós, um filho do Milhões e a filha, Adelaide. O guião final foi escrito pelo Mário Botequilha, mas tive outros parceiros de escrita antes dele. O que eles escreveram e nós tínhamos pensado era um bocadinho ambicioso, no sentido de ser caro demais. A partir daí, passámos a desenvolver este argumento. Tínhamos um realizador e continuei a acompanhar o projecto, sendo uma espécie de padrinho. E com a ajuda e muito mérito do Gonçalo, conseguimos fazer uma coisa digna, que não tem características miserabilistas.”

Pandora da Cunha Telles, a produtora de Soldado Milhões, insistiu que Paixão da Costa se mantivesse ligado ao projecto, e por isso o filme tem dois realizadores. Gonçalo Galvão Teles, por seu lado, teve a sua primeira obra, um telefilme para a SIC, produzido por António da Cunha Telles, o pai de Pandora, há quase 20 anos; e dá aulas de Cinema na Universidade Lusófona há dez anos, onde é colega de Paixão da Costa. Assim, diz, Soldado Milhões “foi basicamente um encontro, um triângulo perfeito. Durante os 23 dias de rodagem, entre meados de Julho e Agosto de 2017, eu e o Jorge praticamente não tivemos de discutir nada. Cada qual fazia o seu trabalho e quando juntávamos ideias, tudo fluía naturalmente. Nunca houve uma divisão estanque e tivemos talvez dois ou três momentos em que víssemos as coisas de forma diferente. Este filme é um filme nosso. Não há uma parte dele e outra minha.”

Entre as dificuldades que a produção da fita encontrou, destaca-se a inexistência de fardas usadas pelos soldados do CEP. E a metralhadora Lewis que Milhões usa é uma réplica feita em Inglaterra. “Veio como adereço e depois metemos-lhe cá um motor para funcionar”, explica Paixão da Costa. E continua: “Quanto às fardas, eu tinha lido que as dos nossos soldados na I Guerra Mundial eram feitas de um tecido que, quando chovia, empapava e ficava tipo papelão. Não sabíamos que tecido era esse, devia ser a lã mais barata que eles encontraram. Quando fizemos provas de guarda-roupa, ficámos satisfeitos, porque não há fotos a cores desse tempo, só a preto e branco. Visualmente, as nossas eram aceitáveis e as texturas pareciam correctas.”

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A escolha dos dois tempos narrativos para contar a história de Aníbal Milhais reflecte a falta de dinheiro para fazer um filme todo ele passado nas trincheiras da Flandres, mas também a vontade dos realizadores de mostrar a personagem “já madura, trazendo consigo as recordações do conflito. Interessava-nos mostrar o que lhe tinha acontecido depois”, explica Galvão Teles. Paixão da Costa e Galvão Teles chegaram a discutir a hipótese de Milhais ser interpretado só por um actor, e aproximar mais as duas épocas em que o filme se passa. “Mas ambos gostámos muito do casting do João Arrais”, conta Gonçalo. “Vimos muitas semelhanças físicas com o Miguel, soubemos que eles já tinham trabalhado juntos e juntámo-los antes da rodagem, para se trabalhar a continuidade da personagem entre os dois. E eles criaram uma empatia que ajudava à identificação de ambos como um só”.

Quanto a Miguel Borges, “que descobrimos ser um grande entusiasta desta época, que estuda e já trazia com ele um entusiasmo sobre ela e sobre o Milhões”, foi escolhido “quase ao mesmo tempo” por Paixão da Costa e Mário Botequilha, quando discutiam “quem poderia ser Milhões com 40 anos”.

Os dois realizadores não poupam elogios à equipa do filme, em que recorreram a efeitos digitais “sem que se note nenhuma costura no resultado final”, como salienta Galvão Teles; nem aos actores, que tiveram “uma pequena recruta” como parte da preparação para a rodagem. “ Eles foram formidáveis, aguentaram a rodagem metidos naquelas fardas desconfortáveis e nas trincheiras, em dias em que o calor passou os 40 graus. Esta nova geração de actores, para além do talento, tem um grande traquejo, muita naturalidade e à-vontade, porque eles começam a fazer televisão e filmes ainda muito jovens”, comenta Jorge.

Gonçalo Galvão Teles insiste: “Houve um cuidado muito grande a fazer este filme. Independentemente das condições de rodagem, das dificuldades e de termos um orçamento abaixo do orçamento médio da cinema português, toda a equipa fez um grande trabalho, até ao nível da pesquisa e da reconstituição. Havia um dossier de produção que circulava, com todas as referências, das trincheiras, das armas, das fardas.” E Paixão da Costa remata: “Fizemos um filme de guerra, coisa que parecia impossível em Portugal.” 

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