Pedro Lopes é o criador do primeiro original português da Netflix. Director de conteúdos da SPi há quase década e meia, escreveu de tudo: filmes, séries, telenovelas. ‘Glória’, diz em entrevista à Time Out, é uma história que guardou para o momento certo.
A televisão não é novidade para Tiago Guedes. No currículo tem Odisseia e Os Boys, ambas para a RTP, e até o filme A Herdade tem uma versão longa e repartida em quatro episódios. Todas elas propostas muito diferentes entre si. Agora, junta a esse leque um thriller de espionagem em dez episódios: Glória. É o primeiro original português da Netflix, estreado a 5 de Novembro, e passa-se no Portugal dos anos 1960, num centro retransmissor que funcionava então numa pequena localidade do Ribatejo às mãos dos EUA – a RARET. Dali saía propaganda norte-americana, emitida para territórios que ficavam para lá da Cortina de Ferro, e é o local para onde convergem, nesta história, agentes da CIA, do KGB e do Estado Novo.
A RARET é um lugar meio esquecido da nossa memória – até porque, em Portugal, afectava quem lá trabalhava e pouco mais. Já o conhecias?
Não fazia a mínima ideia da existência da RARET. Foi o ponto-chave para o meu entusiasmo crescer logo quando me falaram sobre esse sítio e o facto de ele ter sido esquecido, ou escondido, da nossa história. Isso foi muito fascinante. Quis muito tentar perceber melhor o quê que era aquilo.
É um local que dá a Portugal um papel mais interventivo do que aquilo que se imaginaria no decurso da Guerra Fria.
Havia postos idênticos à RARET em vários sítios da Europa. Eram todos importantes, porque cada um abrangia zonas específicas desses países para lá da Cortina [de Ferro]. Estou a trabalhar num outro projecto com um director de fotografia que vivia na República Checa na altura, e ele falou-me da importância que tinham essas emissões para o bem-estar das pessoas, para a forma como iam lidando com a pressão dos regimes.
Como é que essa importância é transferida para a realidade portuguesa em Glória?
Será certamente amplificada. O que o [protagonista] João Vidal está a fazer é contra-espionagem. O João não trabalha para a CIA [que dirigia a RARET], trabalha para o KGB. É filho de uma pessoa importante no governo [português] da altura, portanto tem grandes ligações ao governo e à PIDE, de alguma forma. Fez a guerra em África e por lá mudou as suas ideias... Se calhar já tinha essa tentação e muda na guerra.
Passa-se tudo no Ribatejo?
Ribatejo, Lisboa e há uns flashbacks da guerra. Ou seja, umas idas à guerra e algumas memórias do treino específico do João. Mas está centrado entre o Ribatejo e Lisboa.
O elenco é transnacional, com actores portugueses e norte-americanos. A série impunha que assim fosse?
A própria ideia já o pede. Todo o ambiente à volta da RARET é muito pouco português. A aldeia que eles constroem para viver tem um aspecto americano. Tens aquelas casas com grandes relvados, mas depois a arquitectura é portuguesa. É uma mistura interessante. Aquilo estava em muito mau estado, mas para mim era mesmo importante que fosse feito lá. Para a RARET em si, já tivemos de arranjar um substituto, porque o edifício, para além de ser gigante, estava completamente detonado. Então, fomos arranjar um centro de onda curta para a escala que podíamos filmar. É muito fiel o que fomos descobrir, que era um centro de onda curta da RDP, em Pegões, que também estava fechado. Não estava abandonado a esse ponto e foi muito mais simples para nós.
E a aldeia americana, foi possível reabilitar para se filmar?
Para se filmar. Ou seja, fizemos-lhe um make-up grande. Parece que está óptima. No entanto, não está, obviamente. Tivemos mesmo que trabalhar, reabilitar, reconstruir. Foi um mega-empreendimento, mas foi fundamental para conseguirmos esse coração da série, que é a RARET e toda a sua envolvência. Porque essa aldeia é mesmo ao lado da RARET.
Não fazia a mínima ideia da existência da RARET. Foi o ponto-chave para o meu entusiasmo crescer quando me falaram sobre esse sítio, e o facto de ele ter sido esquecido, ou escondido, da nossa história.
Como é que Glória se relaciona com A Herdade? Ambas se passam no Ribatejo, ambas põem o Ribatejo no centro de grandes acontecimentos e, curiosamente, ambas as personagens principais se chamam João.
[Risos.] Tive essa questão nas mãos. Já não pude fazer nada. Tive que lidar com outro João, numa época em que A Herdade também passa. Mas não se relacionam minimamente. Foi-me muito útil ter passado por um mergulho tão profundo n’A Herdade, porque me ajudou muito plasticamente e me ajudou a perceber o universo daquela época.
Formalmente, passamos do western, em A Herdade, para o filme de espiões. É assim?
Um bocadinho. Sabes, o Glória não foi uma coisa planeada, enquanto filmes como A Herdade foram coisas programadas, foram ideias lançadas e postas a rolar por mim. Chego ao Glória de forma diferente. Fui convidado para um projecto que já estava em andamento. Do ponto de vista programático do meu percurso, surge, acontece. Não foi planeado.
Antes de tudo isto, já tinhas feito duas séries, muito distintas de A Herdade, certamente, e de Glória, quase de certeza: Odisseia [RTP, 2013] e Os Boys [RTP, 2016]. Como é trabalhar produtos tão diferentes para televisão?
São coisas muito diferentes mesmo. Desde logo, os pontos de partida. O Odisseia foi uma desbunda colectiva comigo, com o Bruno [Nogueira] e com o Gonçalo [Waddington]. Tocámos em todas as fases do processo, que foi uma coisa que me entusiasmou muito. É uma das séries que guardo com maior carinho, quer do processo quer do resultado. Os Boys foi um convite. Diverti-me muito, porque tinha actores maravilhosos e momentos de texto de que gosto muito. Mas depois a série não encontrou as pessoas que deveria ter encontrado. O Glória é muito diferente porque o encarei como um filme grande. Ou seja, enquanto nas outras sabia bem a lógica episódica, e a forma de produção era muito mais leve, no Glória tínhamos uma produção grande a todos os níveis, na arte, na roupa, na luz, tudo. Tivemos meios que eu nunca tinha tido para trabalhar numa série tão longa, e eram dez episódios de alguma complexidade. Sabia que me ia meter aqui num comboio mais complexo do que os outros. O meu nível de exigência para com o resultado final do Glória também foi muito elevado. A conversa que tive sempre com os departamentos todos e com a produção foi que queríamos mesmo fazer isto muito bem feito.
Ao dizeres que pensaste nisto num filme muito grande, de dez episódios, isto significa que ela acaba à primeira temporada?
Não. Permite continuar. O Pedro Lopes tinha ideias de uma continuidade.
Que significado tem, para ti, que este seja o primeiro original Netflix com selo português?
Estaria a mentir se dissesse que não é um assunto. São condições de produção que nunca tive. Depois, é trabalhar para uma monstra que também nunca tive. Isso tem interferência, importância. E vem com um sentido de responsabilidade. No sentido de poder ser uma porta para a repetição da existência de produções deste calibre, deste tipo de caminhos. Houve sempre uma preocupação de mostrar que se consegue fazer e que se faz bem.
Sentiam que, quanto melhor fosse a qualidade deste trabalho, melhores seriam as consequências para a produção nacional?
Se estivéssemos a ter esta conversa há dois anos, diria que sim. Neste momento, o universo das séries e das plataformas está tão diversificado, tão sobrepovoado, que acho que a conjugação disto tudo tem muito a ver com o tempo certo, o timing. Eu, pelo menos, sou um grande consumidor de séries e de filmes e já não consigo acompanhar, já não consigo perceber onde é que estão as coisas. Portanto, não sei se vai ter impacto. Se tem importância. Para nós, era muito claro: tinha que estar muito bem feito. Porque uma oportunidade destas, se for para fazer mal, não é mau só para nós. Acaba por ser mau para muita gente que vem a seguir. Pode arruinar vontades de continuar a produzir cá.
É maravilhoso o mundo que se está a viver, porque se descobrem pérolas incríveis que nunca descobririas de outra forma. Mas sinto muita falta do escuro e da sala de cinema e do ecrã grande.
A expectativa que têm é que a série tenha um público em Portugal, ou que vá para lá disso?
Aí não tenho expectativa. Sei que em Portugal, inevitavelmente, vai ter essa visibilidade. Sei também que vai estrear no mundo inteiro, mas não sei o que isso quer dizer. É algo novo para mim. Nunca tive uma série a estrear assim. Portanto, não tenho expectativas no sentido de prever alguma coisa. Tenho curiosidade em perceber o quê que isto significa.
Como é que um realizador de cinema olha para esta hegemonia das séries e das pessoas sentadas em casa a olhar para o ecrã e não nas salas de cinema?
Eh pá, é muito complicado. Comecei por ser um grande adepto deste formato de séries, porque permite um desenvolvimento das histórias e dos personagens de uma forma pouco possível em cinema. Hoje em dia, com esta sobrepopulação, já fico muito contente quando consigo ter a janela de ver só um filme naquelas duas horas, fico muito apaziguado. O que acontece com as séries, com tantas, é que começas a abrir muitas portas e depois não acabas todas, deixas muita coisa a meio. Mas como é que vejo isto? Com tristeza. Não é da aparição disto. É maravilhoso o mundo que se está a viver, porque se descobrem pérolas incríveis que nunca descobririas de outra forma. Mas sinto muita falta do escuro e da sala de cinema e do ecrã grande. Gosto disso. A nossa ligação aí é sempre diferente do que é nos ecrãs do computador, no telefone. Agora vejo pessoas a ver séries em telefones, que é uma coisa que achei que ia ser só uma modinha. Não, veio para ficar e vai ser uma transformação grande. Para quem tem tanto trabalho a construir imagens, é um bocadinho penoso [risos]. É um mundo novo, com uma grande mutação e ainda estamos numa época inicial, porque isto agora vai ser mesmo gigantesco a este nível de coisas para se ver.