Música, Jazz, Billie Holiday
@William P. GottliebBillie Holiday, 1947
@William P. Gottlieb

10 temas jazz contra as injustiças do mundo

No dia 30 de Abril assinala-se o Dia Internacional do Jazz, que celebra as virtudes do jazz como “força de paz, diálogo e cooperação entre as pessoas”. É louvável, mas é bom não esquecer que o jazz também pode ser uma arma na luta contra a injustiça

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É verdade que o jazz se presta particularmente a fomentar o diálogo e o respeito e compreensão mútuos, pois a sua componente improvisativa requer que os músicos se ouçam atentamente e desenvolvam um poder empático – que, nos melhores jazzmen pode mesmo ser telepático – que permite, em fracções de segundo, adivinhar as intenções dos parceiros e ajustar o discurso musical em tempo real, concedendo-lhes espaço ou complementando as suas ideias. Talvez não seja por acaso que os dois grandes totalitarismos do século XX, o nazismo e o stalinismo, execravam o jazz (que, na Alemanha de Hitler foi incluído na “Entartete Musik”, a “música degenerada”). Mas também é verdade que a partir do momento em que o ensino do jazz se institucionalizou e passou a ser aprendido nos conservatórios e a ser alvo de exegeses e teses académicas, tendeu a afastar-se da realidade do mundo e a esquecer que, na sua origem, foi a música de uma minoria que viveu agrilhoada durante séculos e que, mesmo depois de libertada, sofreu na pele a discriminação e a humilhação. É pois oportuno ter presente o trecho da mensagem de Irina Bokova, directora-geral da UNESCO, a propósito do Dia Internacional do Jazz, que recorda que o jazz foi a banda sonora do “movimento dos Direitos Cívicos nos EUA e continua a fornecer inspiração a milhões de pessoas pelo mundo fora, que aspiram à liberdade e lutam pelo respeito e pela dignidade humana”. Neste espírito, apresentam-se dez músicas que representam o jazz como música de protesto e combate.

10 temas jazz contra as injustiças do mundo

“Strange Fruit”, por Billie Holiday

“Nas árvores do Sul, amadurece um estranho fruto/ Sangue nas folhas, sangue nas raízes/ Corpos negros baloiçam na brisa meridional/ Estranhos frutos pendem dos álamos// Uma cena pastoral do galante sul/ Olhos esbugalhados e bocas contorcidas/ Aroma de magnólias, doce e fresco/ E depois, o súbito odor a carne queimada”. Não é difícil perceber que não se trata de uma balada romântica, antes de uma denúncia do linchamento de negros no Sul dos EUA, uma prática frequente nas primeiras décadas do “civilizado” século XX. Arthur Meeropol escreveu o poema em 1937, sob o pseudónimo de Lewis Allan, e musicou-o pouco depois, mas quem o celebrizou foi Billie Holiday, que o gravou pela primeira vez em 1939. A Columbia, editora a que Holiday estava vinculada, rejeitou a canção, mas permitiu que a cantora a registasse na Commodore. Holiday faria uma segunda gravação em 1944 e tornar-se-ia numa das suas canções mais conhecidas (Holiday é até frequentemente creditada como co-autora, embora tudo indique que tal não é verdade).

“Fables of Faubus”, de Charles Mingus

Esta composição do contrabaixista Charles Mingus, surgida pela primeira vez no álbum Mingus Ah Um (1959, Columbia), tem por alvo a criatura baptizada com o improvável nome de Orval E. Faubus, que foi governador do Arkansas entre 1955 e 1967 e que, em 1957, decidiu desafiar a resolução do Supremo Tribunal dos EUA contra a segregação racial nos estabelecimentos de ensino, e deu ordens à Guarda Nacional para impedir o acesso de estudantes afro-americanos à Escola Secundária Central de Little Rock. A presente administração Trump está infestada de Faubus e seria um sinal da vitalidade do jazz que os músicos de todas as cores e credos, da América e do mundo, os mimoseassem com peças comparáveis à de mestre Mingus.

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“Driva Man”, de Max Roach

We Insist! Freedom Now Suite (1960, Candid), do baterista Max Roach, é um álbum integral e explicitamente dedicado à causa do Movimento dos Direitos Cívicos, à denúncia dos séculos de escravidão e discriminação a que os afro-americanos estiveram submetidos e à celebração dos movimentos independentistas de África. O tom inflamado, o empenhamento político e a frontalidade dos textos das canções em nada comprometem a integridade estética do disco, que é um dos marcos da história do jazz. Entre os participantes em We Insist! há a destacar a voz de Abbey Lincoln (então esposa de Roach), a trompete de Booker Little e, surgindo apenas em “Driva Man”, o saxofone tenor de Coleman Hawkins.

[Versão de estúdio, de 1960]

“Driva Man”, com letra de Oscar Brown, é um retrato do capataz branco das fazendas, que entendia possuir direitos sexuais sobre todas as mulheres afro-americanas. Não é preciso prestar muita atenção para ouvir estalar o chicote.

[Versão ao vivo na TV belga, em 1964]

“Alabama”, de John Coltrane

A 15 de Setembro de 1963, a explosão de 15 cartuchos de dinamite colocados pelo Ku Klux Klan numa Igreja Baptista frequentada pela comunidade afro-americana, em Birmingham, Alabama, matou quatro raparigas, com idades compreendidas entre 11 e 14 anos, e feriu mais 22 pessoas. O sermão que o pastor preparara para esse domingo tinha por tema “Um amor que perdoa”. Foram estes eventos que inspiraram o saxofonista John Coltrane a compor “Alabama”, que surgiu pela primeira vez no álbum Live at Birdland (Impulse!), registado em Outubro-Novembro de 1963, com McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo) e Elvin Jones (bateria). Embora as investigações realizadas na altura pelo FBI tenham apurado a identidades dos quatro autores do atentado, não foi feita qualquer acusação até 1977. Um dos homens foi condenado a prisão perpétua nesse ano e sentenças análogas foram proferidas em 2001 e 2002 contra outros dois terroristas; o quarto faleceu em 1994 sem ter sido acusado.

 [O quarteto de John Coltrane toca “Alabama” no programa Jazz Casual, 1963]

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“We Shall Overcome”, pela Liberation Music Orchestra de Charlie Haden

A Liberation Music Orchestra foi criada pelo contrabaixista Charlie Haden (1937-2014) e pela pianista e arranjadora Carla Bley em 1969 e durou até quase ao fim da vida de Haden. Apesar da natureza intermitente e das substanciais mudanças de formação, manteve duas características: a excelência dos músicos (a orquestra foi sempre “um exército de generais”) e o espírito de combate. O primeiro álbum, homónimo (1969, Impulse!) combinava composições de Haden, Bley e Ornette Coleman com canções da Guerra Civil Espanhola – do lado republicano, claro – e uma canção de Hanns Eisler e Bertolt Brecht. O álbum fechava com “We Shall Overcome”, uma canção gospel que fora convertida em hino (oficioso) do Movimento dos Direitos Cívicos dos afro-americanos (e foi objecto de versões por Pete Seeger e Joan Baez).

“Standing Ovation (for Mandela)”, de Romano/Sclavis/Texier

Em 1990, por sugestão do fotógrafo Guy Le Querrec, da agência Magnum, três nomes maiores do jazz francês, Aldo Romano (bateria), Louis Sclavis (clarinete e saxofone) e Henri Texier (contrabaixo), empreenderam uma digressão pela África Central. Não foi uma digressão “em ar condicionado”, actuando nos imaculados átrios dos hotéis de cinco estrelas para turistas endinheirados e para a elite local, mas uma exploração que aceitou o suor, a lama e a poeira e entrou por pequenas aldeias e trocou ideias, notas e ritmos com músicos e dançarinos locais. Esta experiência foi reeditada em 1993 e as impressões recolhidas em viagem foram cristalizadas em estúdio após o regresso a França, naquele que seria o primeiro disco, homónimo, do projecto Carnet de Routes (1994-95, Label Bleu). Quando o trio estava no estúdio da Casa da Cultura de Amiens a registar Carnet de Routes, Nelson Mandela estava, após um percurso de extraordinária determinação e tenacidade, a ser eleito presidente da África do Sul, nas primeiras eleições neste país que foram abertas a cidadãos de todas as raças – o “aplauso em pé” era mais que merecido.

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“Taking Sides”, de Dave Douglas

“Taking Sides” faz parte do álbum Constellations (1995, hatHut), do Tiny Bell Trio do trompetista Dave Douglas, com Brad Shepik (guitarra) e Jim Black (bateria) e é dedicado “a todas as vítimas da brutalidade na antiga Jugoslávia”. Quando o disco foi gravado, em Fevereiro de 1995, o cerco de Sarajevo pelo exército sérvio durava há quase três anos e ainda estava por vir o massacre de Srebrenica de 8000 homens e rapazes muçulmanos bósnios às mãos dos sérvios (que teria lugar em Julho). Em “Taking Sides” podem ouvir-se ecos de música balcânica, mas não são uma nota de “cor local” adicionada especificamente a esta faixa, são antes uma das marcas distintivas da música do Tiny Bell Trio. Douglas é, entre os jazzmen de primeiro plano dos nossos dias, o que mais sistematicamente tem exprimido na sua música a sua crítica e oposição ao rumo do mundo. Constellations inclui ainda “Maquiladoras”, uma faixa dedicada aos trabalhadores das fábricas montadas no México, junto à fronteira com os EUA, que trabalham para a indústria americana e oferecem salários miseráveis e condições de trabalho insalubres.

“...Was There To Illuminate the Nightsky”, do Trespass Trio

O saxofonista norueguês Martin Küchen divide-se por vários projectos, mas todos vibram com a indignação que lhe despertam as iniquidades que grassam pelo mundo que fica fora dos redutos murados de conforto do Ocidente. A faixa “...Was There To Illuminate the Nightsky” provém do álbum de estreia, homónimo (2007, Clean Feed), do trio com os suecos Per Zanussi (contrabaixo) e Raymond Strid (bateria), e retira o seu título da descrição feita por um general norte-americano do espectáculo nocturno criado pelas munições de fósforo branco na Primeira Batalha de Falluja, no Iraque, em 2004. Estas munições, conhecidas afectuosamente no jargão militar por “WP”, “Willie P” ou “Willie Peter” (de “White Phosporus”), queimam literalmente tudo – quando o fósforo branco cai sobre a pele vai abrindo caminho até ao osso – e a combustão que desencadeiam não é extinta pela água. Não haverá candidatos a escrever música sobre o gás tóxico de Bashar al-Assad?

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“Peace Is Not For Us”, dos Angles

Os Angles, outro dos projectos liderados por Martin Küchen, é uma coligação de músicos escandinavos que varia entre o sexteto e o noneto e que pode ser vista como herdeira dos grupos de Charles Mingus nos anos 50-60: estão cá a militância, a paixão, os arranques em tom lamentoso e elegíaco e que, através de combustão lenta, se agigantam em turbilhões de revolta e fúria. Os discos dos Angles têm vindo a ser editados regularmente pela portuguesa Clean Feed e “Peace Is Not For Us” é a faixa de abertura do álbum de estreia (2007). Nas notas de capa, Küchen explica o título e sentimento da peça: “O racismo está aqui. Olhando-te com o seu rosto mortífero, pronto a exterminar-te. Basta que aconteça tu estares do lado errado [...] O nazismo está aqui. Padronizado, configurado de acordo com os teus sonhos, os teus sonhos de uma vizinhança segura”.

“Ohne Kapitalisten Es Besser”, pelos Das Kapital

Não é possível apurar se o trio Das Kapital terá lido Karl Marx ou sequer Thomas Piketty, mas do que não há dúvida é que estudou atentamente o songbook do compositor austríaco Hanns Eisler (1898-1962). Em 1933, após a subida dos nazis ao poder, as origens judaicas e as firmes convicções comunistas de Eisler forçaram-no ao exílio, primeiro na Dinamarca e depois nos EUA. Eisler colaborou assiduamente com Bertolt Brecht e compôs bandas sonoras para Hollywood, até que, em 1948, a Caça às Bruxas do senador McCarthy o fez deixar os EUA, acabando por estabelecer-se na República Democrática Alemã. O trio Das Kapital – o dinamarquês Hasse Poulsen (guitarra), o alemão Daniel Erdmann (saxofone) e o francês Edward Perraud (bateria) – tem alicerçado a sua música na de Eisler e em Ballads & Barricades (2008, Das Kapital Records), Eisler é mesmo o autor de todas as composições. Entre elas está uma canção de 1957 intitulada “Ohne Kapitalisten Es Besser”, que significa “Sem capitalistas é melhor”. 60 anos depois, quando se deitam contas aos dinheiros públicos consumidos no resgate de bancos arruinados por gestões danosas de “ases da finança”, é-se tentado a concordar.

[Ao vivo no clube Aufsturz, Berlim, 8 de Maio de 2009]

Assinalando o Dia Mundial do Jazz, inaugura na quarta-feira, 26 de Abril, pelas 18.30, no Forum FNAC Chiado, uma exposição de fotografia de Jean-Pierre Leloir (1931-2010), que, nas décadas de 1950 e 1960, retratou algumas das lendas do jazz como Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Bill Evans ou Stan Getz (mas também Jacques Brel ou Georges Brassens). Na mesma ocasião será colocada à venda a colecção Jazz Images, uma reedição de luxo de 50 vinis e 35 CDs que “reembala” discos clássicos, como Kind of Blue (Miles Davis), Giant Steps (John Coltrane), Saxophone Colossus (Sonny Rollins), Moanin’ (Art Blakey & the Jazz Messengers), Mingus Ah Um (Charles Mingus), ou Go! (Dexter Gordon), em capas realizadas a partir de retratos feitos por Leloir. Caso não possua estes marcos da história da música, é uma oportunidade a não perder. E mesmo quem os possua todos quererá ter o livro Jazz Images (186 páginas, capa dura,), que reúne fotos de mais de 50 grandes nomes do jazz, captados, em concerto ou na intimidade da vida doméstica, pela objectiva de Leloir. Após a exposição na FNAC Chiado, a exposição fará itinerância pelas outras lojas FNAC do país.

Viva o jazz

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Em 1961, o guitarrista Charlie Byrd fez parte de uma embaixada cultural que foi ao Brasil mostrar o jazz norte-americano e ficou fascinado com a bossa nova, um género então ainda com poucos anos de vida – Chega de Saudade, o álbum de estreia de João Gilberto, fora editado apenas dois anos antes. 

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No princípio, a bateria servia para marcar o tempo, mas as inovações trazidas por bateristas excepcionais foram alterando o seu papel e convertendo-o num par dos outros instrumentistas. Eis sete dos muitos nomes que fizeram essa revolução.

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