Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma obra que se recusa a perder a relevância e inventividade.
Alguns, poucos, já lhe conheciam a voz e o talento das cassetes gravadas em 2010 e de acompanhar Bonnie “Prince” Billy em discos e concertos, mas foi há precisamente dez anos, em Setembro de 2012, que Angel Olsen lançou o primeiro álbum, Half Way Home. Desde então, colocou múltiplas máscaras e cobriu a sua música com diferentes peles – a folk dos primeiros discos; o rock'n'roll que ora borbulhou à tona das canções ora exigiu o protagonismo; a synth-pop a que piscou o olho em dadas alturas e que celebrou sem pudores no EP Aisles do ano passado – mas os ecos da música country nunca deixaram de se escutar, abafados, em tudo o que fazia. Até agora. No mais recente álbum, Big Time, a country assume finalmente o protagonismo e ouvimos a cantora e compositora americana mais exposta e segura de si do que nunca. E nas noites de segunda e terça-feira vamos ouvi-la assim, ao vivo e em Lisboa, a cidade que a própria ama como uma segunda casa.
Quando falamos, uns dias antes destes concertos, a country é o ponto de partida. Angel está em Nashville, a cidade da música, para tocar e prestar homenagem a Lucinda Williams, uma lenda do género e da canção americana. “Ela foi uma das pessoas que me levaram de volta à country. Apaixonei-me pelos discos dela durante a pandemia, [escutei-os] de uma maneira diferente. E sempre amei a voz da Stevie Nicks, que é meio country, mas disco-sound. E adoro a country fora-da-lei de Waylon Jennings e Jeannie C. Riley”, diz. Quando esta mulher começa a falar, é difícil pará-la, e as referências não se ficam por aqui. Menciona também Townes Van Zandt e Tucker Zimmerman, Neil Young, os Big Star e os álbuns a solo de George Harrison. Todos eles pairam sobre o novo disco, só que isso não quer dizer que este seja derivativo, ou o resultado de qualquer crise de identidade. Antes pelo contrário, a personalidade da autora está mais vincada do que nunca e enforma cada nota. Cada palavra.
E Big Time é um disco de palavras, que pedem a nossa atenção. “Quis fazer algo simples, minimalista, onde fosse possível ouvir as palavras, porque elas são muito importantes para mim e o [produtor] Jonathan Wilson soube deixá-las respirar. Não queria que houvesse distracções”, explica. “No fim de contas, elas são a principal razão pela qual as [minhas] canções existem. Sou uma escritora antes de ser uma música, e quis fazer algo que me deixasse voltar a centrar a atenção na minha voz e nas minhas palavras. Como nos meus primeiros trabalhos a solo, que eram mais minimalistas.” Claro que o novo álbum é mais polido e confiançudo do que qualquer coisa que o tenha precedido. “Demorei muito tempo a chegar aqui”, começa a dizer ao mesmo tempo que solta uma gargalhada. Ri-se muito. “Às vezes, quando oiço o meu material mais antigo, dou por mim a pensar que só tinha 21 anos quando escrevi aquelas canções e não fazia ideia de que estava a falar sobre o futuro. As dorzinhas que sentia então eram apenas uma pequena amostra da dor que estava para vir.”
Os últimos dois anos não foram fáceis para ninguém, mas foram especialmente difíceis para ela. Além da pandemia por que todos passámos (e continuamos a passar, apesar de a covid-19 já ser encarada por muitos como apenas mais uma doença endémica), que nos fechou em casa e abriu feridas que tardam a sarar, o pior foi o que lhe aconteceu em 2021, quando, no espaço de dois meses, perdeu a mãe e o pai. E essa perda parece pesar sobre as músicas que agora canta. Quando é confrontada com isso, no entanto, afasta a ideia. “Por acaso, com este disco, até quis trazer alguma cor à minha vida. Fazer algo que me acalmasse. Acho que posso falar de coisas difíceis sem perder o sentido de humor. Claro que há temas mais escuros e pesados. A ‘This Is How It Works’ foi escrita especificamente sobre os meus pais terem morrido e não ter ninguém com quem pudesse falar sobre isso.”
Não é o único momento em que a realidade e o quotidiano da cantora e compositora norte-americana se imiscuem no álbum. Meses antes, em Abril do ano passado, tinha-se assumido como gay e apresentado ao mundo a sua parceira de então, Beau Thibodeaux, que escreveu com ela a faixa que dá título ao disco. Também afasta, contudo, a ideia de que este seja um álbum queer. “Quando me dizem isso, lembro-me das entrevistas da Agnès Varda. As pessoas perguntavam-lhe como se sentia enquanto mulher realizadora, e ela dizia que não se considerava uma mulher realizadora, que era uma realizadora que por acaso era mulher. Isso não quer dizer que isso não seja importante e que não se deva abrir espaço para que mais mulheres sejam realizadoras. Só que ela não estava a fazer filmes para mulheres, mas sim para pessoas”, reconta. “Sinto o mesmo em relação à minha sexualidade. Só me assumi porque estava numa relação e achei que estava a mentir por não dizer o quanto a amava. Ao mesmo tempo, queria que os fãs que não têm amigos ou uma família que os apoiam soubessem que havia alguém que admiram que é como eles.”
“As pessoas tendem a personalizar as canções. E estou a aprender a não levar a peito quando os ouvintes tornam as canções pessoais”, confessa. “Há entrevistas em que os jornalistas começam logo a perguntar se estou bem, por causa do que se passou e de me ter exposto mais nestes novos poemas. E eu só tenho vontade de perguntar se eles se sentem confortáveis com o quão vulnerável admito ser? Estou muito confortável com a minha vulnerabilidade, por isso não me perguntam se estou bem. Perguntem a si próprios se estão bem, porque eles é que se sentem desconfortáveis. Se alguém se sente mal ao ouvir este disco é porque há algo na própria vida com que não está a saber lidar”, continua. “As pessoas interpretam tudo o que fazemos à luz das suas próprias experiências. Acontece o mesmo com a arte. Por muito que algo seja pessoal, por muitos detalhes da minha vida que partilhe, os outros vão apenas ouvir aquilo com que querem identificar-se.”
(A partir daqui, a conversa, que foi fluindo livremente por entre gargalhadas, com perguntas perdidas e respostas transviadas, descamba. No bom sentido. Fala-se de A Morte do Autor, de Roland Barthes – Angel nunca leu, porém garante que vai ler – e da possibilidade de haver ou não uma leitura correcta e definitiva de um texto. Ela refere outro livro do mesmo autor, cujo nome não recorda, provavelmente Fragmentos de um Discurso Amoroso, que lhe foi oferecido há uns anos por Ana da Silva, das Raincoats, numa das suas visitas a Lisboa. Lembramos pais mortos que nos visitam e confortam ou confrontam em sonhos, e já estamos a falar de Big Time, o filme lynchiano concebido por Angel Olsen e realizado por Kimberly Stuckwisch que acompanhou o disco. É recomendado um documentário de Laurie Anderson, Heart of a Dog, uma reflexão sobre a vida e a morte – “promete que o vês”, dirá mais tarde, quando nos estamos a despedir. E a entrevista volta a entrar nos eixos.)
Como vão ser os concertos em Lisboa? “Especiais”, responde. Angel Olsen está ansiosa por voltar. Além de ter bons amigos cá, incluindo Sérgio Hydalgo, antigo programador da ZDB e o promotor destes concertos, é apaixonada por Lisboa. “Quase todos os membros da minha banda vão chegar uma semana antes. E tenho muitos amigos que quero ver aí. Ainda por cima a minha melhor amiga e mentora vem comigo. Ela nunca esteve em Portugal e é uma das minhas pessoas favoritas. Mal posso esperar por lhe mostrar Sintra.” Cala-se, bruscamente. “Sei que sou parte do problema”, diz com alguma mágoa, “mas quero muito mostrar-lhe os sítios de que gosto”. O “problema” de que fala é a gentrificação e turistificação das cidades. Como qualquer jovem, preocupa-se com isto, e reconhece os desafios que o turismo massificado tem colocado às comunidades. “Gostava que pelo menos uma parte do dinheiro que o turismo traz fosse usado para enfrentar os problemas da habitação e para melhorar os transportes públicos. Que fosse usado a nosso favor e não contra nós.” Gostávamos todos. Pena não ser esse o mundo em que vivemos. Suspiramos.
Podia ser pior. Pelo menos há dois concertos para ver, na segunda e na terça, no Capitólio. “Estou a tentar meter canções mais antigas no alinhamento. Já estamos a tocar este disco há seis semanas, por isso comecei a aprender a tocar sozinha algumas faixas do Phases.” Porquê sozinha? Por causa da covid-19, sempre a covid-19. Angel admite que há o risco de os membros da banda ficarem doentes e ela ter de os mandar para casa, mas enquanto estiver saudável não vai cancelar nenhum concerto. Toca sozinha se for preciso. “E vai ser incrível, aconteça o que acontecer. Os concertos nunca foram tão importantes como hoje”, considera. “As pessoas estão a colocar em risco a própria vida para ouvir a minha música. Isso significa muito para mim. Estou incrivelmente grata.” Mais uma pausa. “Agora, às vezes, estou a meio de uma canção e vejo que alguém está a chorar de emoção. E começo quase a chorar.” Não há problema. Haverá alguém para lhe, para nos, secar as lágrimas.
Capitólio. Seg-Ter 21.30. 28€