A fadista Ana Moura passou os últimos anos a construir Casa Guilhermina, declaração de intenções, testemunho de coragem e vitalidade artística. Um disco de ruptura onde num momento estamos a ouvir um fado tradicional, a seguir um semba, de repente há uma batida de kizomba, dança-se um fandango e ouvem-se outras músicas portuguesas e do mundo lá ao fundo, em loop – por vezes, escuta-se tudo isto ao mesmo tempo.
Era difícil imaginar que Tiago Miranda, o artista que conhecemos como Conan Osiris, pudesse ter um ano mais preenchido do que 2018, quando o álbum Adoro Bolos meteu o seu nome na boca do público mais atento. Mas 2019 foi ainda mais especial, com a vitória no Festival da Canção a colocá-lo no centro de muitas conversas e discussões. Tentámos entrevistá-lo várias vezes ao longo destes meses – antes da actuação na Eurovisão, antes de um concerto no Estúdio Time Out, antes do Super Bock Super Rock – sem sucesso. Até agora. Antes do concerto desta quinta-feira, no Coliseu dos Recreios, encontrámo-nos finalmente na loja ContraNatura – Erótika, perto da Praça do Chile, para falar da vida e da música.
No início do ano disseste que o teu 2018 tinha sido tão incrível que o mundo podia acabar amanhã. Dirias que o teu 2019 foi mais ou menos incrível?
Foi igualmente incrível, mas com experiências diferentes. O 2018 foi um bocadinho mais interno, mais privado. E o 2019 foi mais externo, mais widespread. Porém a intensidade foi igual.
Continuas a achar que o mundo podia acabar amanhã?
Podia sempre acabar. Se bem que, agora que já estive tão perto do Japão, não convinha acabar antes de ir lá.
Decide-te: pode acabar ou não?
Se for para acabar, acaba. Se soubesse que daqui a uma semana o mundo ia acabar eu não chorava. Let's leave it at that.
A participação no Festival da Canção mudou de alguma forma a tua vida?
Mudou bastante. Foi onde explodiu a cena toda. De um momento para o outro, passei a ser conhecido pela generalidade das pessoas. That's amazing.
Mas também teve um lado negativo, ou não? Agora és alvo de um ódio que presumo que dantes não sentisses.
Sentia, mas não com tanta veemência. A partir do momento que começaram a escrever sobre mim, em 2018, deixei logo de usar o Facebook. E isso foi muito bom. Porque se ainda usasse o Facebook em 2019 tinha tido duas depressões e bulimia.
Nas tuas canções cruzas música cigana, do médio oriente, dos Balcãs, de África, fado e outras coisas. De onde é que vem isto tudo? Qual foi a tua educação musical?
Tem um bocadinho também a ver com o sítio onde estamos e onde trabalhei durante seis ou sete anos, que era onde ouvia e descobria mais música, onde viajava no Youtube. Deixava a lista no automático e às vezes descobria coisas que me surpreendiam. Isso acabou por me dar toda essa educação, por me mostrar coisas de que de certa maneira já gostava, mesmo sem saber que existiam, como o turbo-folk da Sérvia. Comecei a ouvir e pensei: “ya, isto é tudo o que quero”. Quero dançar e ter uma parte triste e supermelódica.
Quais foram as últimas canções ou os últimos álbuns que ouviste e te fizeram sentir assim? Que te surpreenderam?
Sabes que nunca mais ouvi um álbum do começo ao fim. De ninguém. Nem o álbum da Nicki Minaj, que é uma pessoa que adoro, ouvi todo. E isso faz-me pensar um bocado. Porque, se nem eu ando a consumir um álbum inteiro, ponho-me no lugar dos outros e pergunto-me se fazer um álbum ainda faz sentido. Se os singles não serão uma via melhor para a minha música.
Tinha pensado perguntar-te se encontravas alguns pontos de contacto entre a tua música e o trabalho de uma Rosalía, por exemplo, ou de um Pedro Mafama, mas agora não sei se consegues responder.
Mas eu conheço a Rosalía, calma. E o Pedro Mafama.
E vês alguns pontos de contacto?
Vejo pontos de ligação, embora o Adoro Bolos tenha nascido antes de toda essa cena. E curti bué aquela música, “Con Altura” [de Rosalía e J. Balvin]. Consumo mais facilmente esse tipo de música do que o álbum, El mal querer. Por muito conceptual que possa ser ou whatever, eu prefiro outras coisas. Se estou a ouvir uma música é porque me quero divertir, ou dançar.
A Rosalía tem sido acusada de apropriação cultural. Como é que tu, enquanto homem branco de Portugal que vai buscar muitos sons ao sul global, encaras esta questão?
Depende sempre da intenção. Tem a ver com o que ressoa em cada um, e se ressoa mesmo verdadeiramente. Se bem que acho que esta conversa da apropriação cultural tem algo de condescendente. Porque quando sabes o que é a tua cultura e a cultura dos outros, sabes onde é que começa uma coisa e acaba outra. Não há nenhuma confusão.
Apesar de o português se ouvir nos teus discos desde o início, dantes cantavas mais em inglês. Mas no Adoro Bolos começaste a cantar só em português. A tua relação com a língua foi mudando?
Foi tudo muito natural. Dantes, cantar em português causava-me alguma ansiedade. Não só porque achava que não cantava bem em português, como achava que não tinha uma linguagem para cantar em português. Quando cheguei ao Adoro Bolos já me sentia mais confortável com isso.
Não teve a ver com coisas que começaste a ouvir, nem nada.
Teve a ver com auto-estima. Foi um processo muito pessoal.
E não é só a língua que tem mudado. De disco para disco, apesar de haver uma matriz comum, o teu som foi-se alterando. Foi o resultado de um crescimento interior? Ou teve mais a ver com as coisas que foste ouvindo?
Sinto que sou sempre um work in progress. Nunca sei o que vai acontecer a seguir. Se calhar para o ano, quando tiver outro álbum, vou olhar para o Adoro Bolos e pensar que é um lixo, que é o que tenho tendência a fazer.
Mas olhas assim para o Música, Normal, por exemplo?
Não gosto de ser assim tão desrespeitoso. Há coisas que penso que podiam ser melhores, mas também acontece o contrário. Às vezes vou ouvir músicas minhas antigas e penso: “isto é grande som”.
Continuas a cantar a “Amália”, que é uma canção do Silk.
Claro. Mas essa canção é mesmo especial. Idealmente, todas as minhas músicas tinham o status da “Amália”. Só que não podes fazer com que todas as músicas tenham um peso que não têm.
O concerto desta quinta-feira, no Coliseu, vai ser diferente dos outros?
Vai ser diferente, para começar, porque tem muito mais coreografia. Tem bailarinos.
Quantos?
Não posso dar spoilers. Mas mais de três. E vai ter músicos também.
Mas isso no Lux, por exemplo, já tinhas.
Sim. Estou com o Cheong e o Sunil há quase um ano. Já não consigo imaginar as cenas sem eles. Quer dizer, quando vamos para a China ou para outro sítio, não os podemos levar, e é tranquilo. Mas em Portugal já é estranho actuar sem eles.
E o facto de estares numa sala como o Coliseu, com tanta história, é algo que pesa sobre ti? Imagino que dizeres à tua avó que vais tocar à ZDB seja diferente de dizeres que vais tocar no Coliseu dos Recreios.
Admito que tens razão. Mas não sinto isso, são mais as outras pessoas. Para mim é só um concerto. Estou a preparar uma cena diferente, mas vamos lá ter calma. Não gosto de me inchar muito.
Quando lançaste o primeiro disco, em 2014, passava-te pela cabeça que passados cinco anos ias estar a tocar para mais de mil pessoas no Coliseu?
Não. Nem no Adoro Bolos eu tinha noção que ia chegar a tanta gente. É por isso que o disco está tão podre. Se soubesse que era para durar mais tempo tinha feito um bocadinho melhor [risos].
Já estás a trabalhar no próximo disco?
Estou a fazer muitas coisas, se bem que é tudo muito embrionário. Não tenho letras, ainda. Mas já tenho mais de 30 instrumentais.
Deves ter sido abordado por várias editoras. Consideras assinar por uma multinacional ou preferes continuar de forma mais independente?
Posso dizer-te que vou agora lançar um bundle com os meus três primeiros discos, a Música do Tempo da Loja, e já vai ser distribuído pela Sony.
Então provavelmente também vão lançar o teu próximo disco de originais.
Vamos ver. A versão física do “Telemóveis” também foi editada pela Sony. Temos uma relação.