Música, Pop, Joana Espadinha
©Joana LindaJoana Espadinha
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Joana Espadinha: “São as canções que me resolvem. Isto é tudo terapia”

A artista sobe a palco em Lisboa e Porto para apresentar ‘Ninguém nos Vai Tirar o Sol’. Num dia de quase chuva, convidamo-la a sentar-se no divã de uma esplanada.

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Em “Ginger Ale”, canção que compôs para o Festival da Canção deste ano, Joana Espadinha confessa-se assoberbada. “E se o multitasking nunca tiver fim?” Não será ela a cantar, mas podia bem ser, até porque tudo o que escreve, reconhece, é mais ou menos autobiográfico. Foi assim que nasceu o terceiro álbum em nome próprio, pensado e gravado durante o primeiro confinamento, que foi também o tempo da primeira gravidez. Um exercício terapêutico de pop inteligente, apoiado na escola do jazz e numa escrita sólida, com aquela graça que se alcança rindo das coisas sérias. O disco será finalmente apresentado em palco na íntegra, quando já se começa a desenhar o sucessor e se acumulam encomendas de composição para outros. Para mais tarde fica a ideia de editar os contos e os poemas que escreve sem pôr música em cima. Por agora, o multitasking tem limites.

Ficamos bem aqui fora?
Estou fechada em casa desde dia 1. Covides, isolamentos... isto sabe-me pela vida...

Mais um isolamento? Isso vai dar novo material para escrever, calculo.
[Riso] Sim. Mas é preciso tempo... Eu, material tenho sempre muito. O problema, desde que fui mãe, é conseguir tempo para me organizar. Exige alguma procrastinação, ter um dia inteiro para compor... isso nunca acontece.

Estava a ouvir a tua música para o Festival da Canção deste ano, que saiu há pouco. A terapia continua, não é?
Sempre! E nessa canção vê-se.

Digo isto porque já te ouvi dizer sobre a tua música, e sobre este último disco em concreto, que é um exercício terapêutico.
Exacto. É um mecanismo de sobrevivência, acho. E, claro, dá-me muito gozo também. É engraçado que para o Festival – eu que gosto muito de escrever e sinto que tenho facilidade em escrever coisas diferentes –, quando de repente percebi que já só tinha um mês e as possibilidades todas em aberto... de repente foi difícil. Mesmo em cima do prazo, estive ali uma semana em que escrevia alguma coisa, e pensava “não, se calhar não é isto”. E começava outra... tinha várias ideias.

Ficou uma gaveta cheia para outro disco.
E vou aproveitá-la, claro. Depois fiquei com duas músicas, uma balada e esta que ficou e mandei a um grupo de amigos...

Um focus group.
Pois. A escolha foi quase unânime. E é uma canção que podia perfeitamente ser eu a cantar.

Mas...
Mas senti que, como estive no Festival há relativamente pouco tempo, com a canção do Benjamim [“Zero a Zero”, em 2018], funcionaria melhor ser só autora. Também é mais confortável assim [riso]. Aquilo tem muita exposição e vai-me saber bem estar só sentada a assistir. Porque agora o meu trabalho já está feito.

Tens composto para muita gente. Fica a sensação de que vais dando largas à criatividade, criando noutros estilos...
A ideia é um pouco essa, mas na verdade surgiu ao contrário: comecei por compor muita coisa e querer cantar tudo. E depois os músicos que trabalhavam comigo, os meus amigos, foram alertando. “Joana, isto é tudo muito diferente. Aqui estás a fazer uma coisa wanna be Sérgio Godinho, depois aqui um rock mais pesado, depois aqui outra coisa mais pop. Tens de te decidir, porque não estás a comunicar uma coisa muito clara.”

E no princípio havia muito o toque do jazz, no arranjo, na estrutura.
Sim, sim. É a minha escola, foi o que eu estudei e é inevitável que isso tenha muita influência. Teve a vantagem de me dar ferramentas para eu conseguir compor, fazer os arranjos. Porque o estudo da harmonia dá-me essas possibilidades também e a improvisação, no fundo, é compor em tempo real. Mas depois tinha outras limitações. Mesmo o tipo de composições que eu fazia, apesar de já estar à procura da pop, eram canções com muitas partes, que não tinham propriamente refrões... era outro estilo. Quando percebi o que queria fazer, tive pena de deixar esses outros mundos esquecidos e então percebi também que tinha a hipótese de continuar a compor para outros.

Dizes que podias cantar a música que fizeste para o festival. “Ainda nem é quarta-feira/ não sei se lá chego inteira/ e se o multitasking nunca tiver fim?” A tua vida está assim?
Está [riso e pausa]. Eu acho que só consigo escrever a verdade. Obviamente tem esse lado terapêutico de me ajudar a resolver as coisas. Mas também me ajuda a resolver pelo lado do humor, por brincar com as coisas, por desdramatizar. A maternidade tem sido muito marcante. É maravilhoso, incrível, mas ao mesmo tempo é aterrador e muito cansativo. E a canção acho que toca num aspecto fundamental, que é de facto nós, mulheres, de repente ficarmos com muitas expectativas para corresponder. Umas que nos foram impostas, outras que nós sonhámos para nós próprias, quero ser bem-sucedida, quero ter uma carreira, família, casa, filhos, tudo e mais alguma coisa, quero ser perfeita...

“Já me libertei da super-mãe”, ouve-se no refrão.
Precisamente. Achei que precisava escrever isso.

As canções resolvem.
São as canções que me resolvem. Isto é tudo terapia [riso].

Música, Joana Espadinha
©DR

A leveza pop é boa para resolver assuntos sérios?
Sim, para desdramatizar. É engraçado que esse espírito leve, ligeiro, não me foi natural. Lembro-me de o meu pai ouvir as minhas primeiras composições e dizer “mas tu és uma rapariga tão feliz, porque é que escreves coisas tão melancólicas?”.

Adolescente, fechada no quarto a compor em tom menor.
Sim, por aí. Eu tinha muito esta coisa de escrever coisas mais pesadas. Depois comecei a perceber que havia outras coisas de que gostava, que eram aparentemente mais felizes e mais alegres, mas que tinham uma certa ambiguidade, um certo veneno, como diz o Benjamim. Aquela amargurazinha para temperar. Acho piada a essa ambiguidade. Na música brasileira tens muito isso, canções aparentemente felizes sobre assuntos tristes. Essa estranheza também serve a música. Lembro-me que quando estive a estudar em Amesterdão havia uma disciplina de combo brasileiro – aquilo foi estranho para mim, porque ela podia ao menos ter-me dispensado da aula de pronúncia portuguesa, não dispensou, e eu tinha de estar ali a ouvir umas quantas calinadas. Mas lembro-me particularmente de uma vez, em que assisti à performance de umas alunas que estavam a cantar uma canção que é “A Flor e o Espinho” [começa a cantarolar]: “Tira o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor”. Uma letra daquelas de partir o coração, e elas a abanar o rabo, com um sorriso, a música inteira [riso]. Lá está, na superfície a música parece simplesmente alegre, mas tem outras camadas.

A tua gravidez caiu mesmo em cima da pandemia. Isso deu muitas camadas para a tua música.
É impossível fugir a esse tema para falar deste disco, de facto. A maternidade era muito esperada e calhou mesmo em cima do primeiro confinamento. Dois eventos com uma dose muito grande de incerteza implícita. A pandemia fez-nos duvidar de tudo, por não sabermos como ia ser a vida daqui a um ano, a uns anos... e a maternidade é uma experiência que já faz isso por natureza.

E então nasce este álbum chamado Ninguém nos Vai Tirar o Sol, que também já te ouvi dizer que não é o mesmo que dizer “vai ficar tudo bem”.
Nem pensei muito nisso quando escrevi a canção. Mas percebi depois que aquilo era o meu “vai ficar tudo bem”...

Com a tal ambiguidade.
Sim, isso, com alguma realidade. E é um bocado naïf, claro, “ninguém nos vai tirar o Sol”. Um dia há-de se extinguir também...

Mas ainda demora.
[Riso] Exacto. Eu comecei a escrever o disco antes da pandemia. Tinha assim umas três ou quatro canções. E o processo de escrever para mim é mais custoso do que escrever para outros, curiosamente. Porque parte de um lugar mais vulnerável, é muito mais específico, é sobre a minha vida...

Teres sempre um lado autobiográfico nas canções não te faz temer uma rapariga que tem mau feitio, que não sabe que é feliz e tem queda prá desgraça?
[Riso] Isso é sempre verdade, em certa medida. O “Mau Feitio” talvez seja a minha canção mais premeditada. Pensei que queria escrever uma coisa à la Rita Lee, que desse vontade de dançar, divertida, e de repente pensei que mau feitio é uma coisa que toda a gente entende o que é. E então perguntam-me muito porque é que eu, que as pessoas acham que não tenho assim mau feitio, estou a cantar aquilo. Portanto... és capaz de ter razão, há sempre uma tendência para entenderem que me estou a descrever literalmente. Mas a verdade é que também tenho os meus momentos de mau feitio, como toda a gente. Se o bife vier bem passado, por exemplo.

Escreves sem ser para pôr música em cima?
Sim, sim. Aliás, eu comecei por aí.

Há um plano para isso?
[Pausa.] Ainda não... é como quando eu era adolescente, acho, quando a música era o meu plano pairante. “Um dia...” Agora acontece o mesmo com a edição da escrita. Desde miúda que escrevo poemas, comecei por aí, e ainda escrevo poemas, às vezes contos, e tenho vontade de editar. Mas estou nessa fase de “um dia, quem sabe...”. Se calhar penso nisso para a próxima década.

Continuas a dar aulas de jazz na Universidade de Évora e no Hot Clube...
Sim, um trabalho que adoro também.

O que dizem os teus alunos de jazz da tua pop?
[Riso] Normalmente quando dizem alguma coisa é para fazer um elogio. Uma parte será graxa, outra será autêntica. Já estive no lugar deles [riso].

É preciso desconfiar dos que estão calados.
Por acaso tive uma aluna que me disse uma vez que não tinha gostado do meu primeiro disco. Eu pensei: bom, é sincera, obrigada, mas será que eu era capaz de dizer isto a um professor meu?

“Também não vou gostar do teu primeiro exame.”
[Riso] Exacto. Mas é engraçado. Quando comecei a escrever canções pop pensei que a malta do jazz me ia deserdar. E nunca senti isso. Se calhar porque algumas pessoas ficaram caladas, de facto. Mas sempre senti o meu trabalho valorizado, apesar de ser bastante diferente.

O jazz deu-te segurança?
A escola de jazz tornou-me mais capaz em funções que se atribuem mais a homens. Ainda hoje há pessoas que me perguntam se sou eu que escrevo a música ou se é o Benjamim, assumindo que eu não escrevo, que não arranjo. Lembro-me de quando estava a estudar em Amesterdão haver alguma surpresa por eu improvisar, era das poucas. Hoje não é nada assim. Aí tenho de valorizar o Hot Clube, porque desde o dia 1 fui tratada igual aos outros instrumentistas. Eu tinha de cantar a harmonia, tinha de aprender a harmonia. Por ser cantora – estas coisas depois cruzam-se, temos uma maioria de cantoras mulheres, é a questão do instrumento e a questão do género – esse estímulo e essa capacitação foram essenciais para que eu hoje em dia escrevesse música e me sentisse confiante com isso.

Vais regressar ao Maria Matos, onde já passeaste um pouco este disco.
Sim, em Junho fizemos um pré-lançamento no Maria Matos, aproveitando para lançar o vinil do disco anterior [O Material Tem Sempre Razão]. Apresentámos só algumas canções. Agora vamos apresentar o disco todo, com a banda mais rodada, com outro caminho feito com as canções. E além do mais temos as convidadas...

Convidadas, plural?
Pois, se calhar já falei demais [riso]. Além da Luísa Sobral em Lisboa e da Cláudia Pascoal no Porto, estou com uma segunda convidada [em Lisboa] que me vai confirmar à última hora, já estou mesmo a ver [riso]. [Entretanto, Carminho foi anunciada como a segunda convidada em Lisboa.]

22 de Fevereiro. Maria Matos, Lisboa | 25 de Fevereiro. CCOP, Porto

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Com 15 anos, Mallu Magalhães çomeçou a carreira com a pressão de ser a grande revelação da música brasileira. Entre o álbum Pitanga (2011) e Vem (2017), mudou-se para Lisboa, distanciou-se da folk e das fixações anglo-saxónicas, provou o sabor da saudade e redescobriu o colorido calor do samba e da bossa nova, ganhando mais confiança na sua poesia. Quase 15 anos depois de entrar no mundo da música, segue em elegante evolução e apresenta Esperança, um disco escapista.

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