Conhecemos David Bruno sobretudo como produtor (do Conjunto Corona a PZ), mas nos seus discos a solo revelou ser um mirabolante contador de histórias das zonas esquecidas de Portugal. Depois de se debruçar sobre Vila Nova de Gaia, em Raiashopping, foi à terra dos avós para prestar homenagem ao Portugal dos cafés com cheirinho, dos enchidos, das festas de espuma, dos emigrantes, das tainadas e dos campeões que bebem minis no café em tronco nu nos dias de calor.
Se fosse uma personagem de banda desenhada, Júlio Resende seria uma espécie de Dr. Manhattan, vivendo simultaneamente em épocas diferentes e servindo como elemento de interligação entre elas. É assim desde que o ouvimos no inicial e promissor Da Alma (2007), mas tornou-se particularmente evidente com Amália por Júlio Resende (2013), Fado & Further (2015) e, em aparente sentido oposto (embora numa toada steampunk), com Cinderella Cyborg (2018). E é assim agora: Júlio Resende Fado Jazz Ensemble, que é lançado nesta sexta-feira com o selo da Sony Music, é uma tapeçaria que usa a música popular como urdidura e entrelaça as suas linhas de pauta em padrões de fado, jazz e blues. Não para nos deixar parados a admirar. É um disco para nos pôr em andamento.
“Gosto de olhar as pessoas e as coisas de um modo renovado, nunca antes visto de preferência, olhá-las com cuidado. Não me esquecer das coisas boas que já ouvimos, e procurar construir coisas boas que ainda não tenhamos ouvido”, diz Júlio Resende, numa troca de correspondência com a Time Out. A afirmação surge a propósito de “Fado Blues”, tema que, dizemos nós, convoca uma memória não identificada. Amália, ainda? Não. “Na verdade, a reminiscência desse tema que deve estar a fazer cócegas no ouvido deriva dos Deolinda”, revela o pianista. “Tentei alvejar no peito o ‘Fado Toninho’, transformando-o numa canção minha. E sim, encontrei uma alma blues nessa abordagem.” Júlio Resende não se contenta com a memória, recupera-a, desmonta-a, transforma-a e, por fim, revive-a.
O espectáculo que há um ano estava a apresentar no palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, era isso mesmo: não eram as melodias dos fados de Amália que tocava, num espectáculo de homenagem à fadista, mas a memória que delas tinha. E esse processo não se apaga num álbum de originais como Júlio Resende Fado Jazz Ensemble. Torna-se apenas mais sinuoso, impenetrável e, em última instância, invisível. Resende está em constante viagem na fita do tempo; quem o ouve é que o julga ordeiramente sentado ao piano a debitar mais uns quantos temas para uma rodela de plástico. O movimento é imprescindível. “Tenho o mesmo respeito pelo passado como tenho pelo futuro. Acho que só assim se pode seguir em frente: caminhar implica sempre ter um pé atrás e outro à frente. Ter os dois pés à frente não funciona. Ter os dois pés atrás também não.”
Definir o género deste trabalho é, também por isso, tarefa vã. “Este não é um disco de fado, este não é um disco de jazz. Este é um disco de fado, este é um disco de jazz”, brinca. “Adoro o paradoxo, como Agostinho da Silva. Não é o fado, enquanto metade, nem o jazz, enquanto metade, que me atrai neste disco, é o paradoxo ‘que contém a vida no seu total’.” Mais vale definir o movimento: “Este é um disco de banda, com a energia disso. Só o balanço da bateria do Alexandre Frazão já põe o salão em polvorosa.” Parêntesis: “Pólvora é uma boa qualidade para a arte. Quer seja do artista para o público, quer seja do público para o artista. Porque o artista também deve aprender a ser atingido.” Fecha parêntesis. Além de Frazão, a banda, o ensemble, conta com André Rosinha e Bruno Chaveiro.
Qual foi o papel destes músicos no rumo do disco? “Foi crucial”, garante Júlio Resende. “A guitarra portuguesa do Bruno veio ‘cantar’ comigo as melodias e os solos, e misturar dois instrumentos com cores muito diferentes. O groove e o bom gosto do Frazão veio trazer um trampolim para os nossos pés, como se já tocássemos aos saltos. E o Rosinha está lá para mostrar que a terra ainda assim é o lugar mais bonito onde se estar, junto dos que amamos. O contrabaixo é a ligação à terra na música. É lá que se plantam as sementes”, enquadra. “O que é minha responsabilidade e o que faço enquanto líder é criar, inventar os alvos, apontar o horizonte e depois dizer ‘Vamos, malta!’. E não é que eles me levaram…”
Gosto de olhar as pessoas e as coisas de um modo renovado. Não me esquecer das coisas boas que já ouvimos, e procurar construir coisas boas que ainda não tenhamos ouvido.
Tal com em Amália por Júlio Resende, este disco termina com voz, em “Profecia”, após uma sequência ininterrupta de instrumentais. É uma forma de reconfortar quem o ouve, para que fechem a experiência sendo devolvidos a um lugar conhecido, habitado? Até termos perguntado, não era. Agora, passou a ser: “Bonita forma de o ver. Não era necessariamente a minha, mas se não se importa gostaria muito de guardar esta. Bonita!”. “‘Profecia’ é a minha primeira canção em que fiz a letra e a música, e decidi acabar o disco com esse gesto. E porque adoro o instrumento que se chama voz. O mais belo de todos”, afirma o pianista. A voz, no caso, é de Lina Rodrigues, “uma das melhores fadistas que temos no mundo”, que tem a vantagem de fechar o círculo – Amália por Júlio Resende encerrava com “O Medo”, o mesmo tema com que abre o último disco de Lina, com Raül Refree.
O que não significa o fim. Júlio Resende Fado Jazz Ensemble ensaia, de resto, um plano de fuga: “Vira Mais Cinco”, que é o primeiro single e já vai noutra direcção. É uma homenagem a José Afonso. Será uma porta aberta? “Por agora, não. É um vira, um vira em 5/4, um compasso diferente, mais saltitante, e fez-me lembrar o Zeca o nome que lhe dei. Decidi dedicar-lhe essa canção pelo modo como ele virou o jogo, virou a mesa, e nos fez a todos nós, com a canção como arma, mudar o nosso mundo para melhor.” Aguardemos, então, por um mês mais maduro, mais moreno. Ele já existe. Nós é que ainda não chegámos lá.