Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma obra que se recusa a perder a relevância e inventividade.
Sabe-se pouco sobre a vida de Sabina, a vendedora ambulante que empresta o nome ao novo disco de Luca Argel, com apresentação marcada para a próxima quinta-feira, 23, no B.Leza. Reza a história (que se confunde com a lenda) que era uma mulher racializada e ganhava a vida a vender laranjas. Uma trabalhadora que, num dia como tantos outros, vendeu fruta a um bando de estudantes republicanos. E eles, por sua vez, lançaram os citrinos contra um figurão da monarquia. Os polícias – tradicionalmente trabalhadores a quem são dados pequenos privilégios em troca da protecção das classes dominantes – não gostaram e, como não podiam fazer nada aos meninos ricos e brancos, a todos os níveis mais poderosos do que eles, prenderam Sabina – proletária, mulher, negra, o tipo de gente de quem a polícia pode abusar sem medos.
E muitas, tantas, demasiadas vezes a polícia abusa. Que o diga, para citar só um exemplo, Cláudia Simões, também ela proletária, mulher e negra. Há uns anos foi espancada por agentes da PSP portuguesa e, porque as mazelas e sequelas da violência estatal pelos vistos não eram suficientes, ainda vai ter de responder em tribunal por “ofensas à integridade física do agente da polícia”. Sabina só teve mais sorte do que Cláudia porque os estudantes, ricos e brancos, que desafiaram a polícia, e outros clientes dela se juntaram, saíram à rua e não se calaram até que a libertaram, de acordo com o texto escrito por Luiz Antonio Simas e interpretado pela actriz luso-angolana Nádia Yracema, que atravessa o disco, dividido por pequenos excertos que brotam à superfície pelo meio das canções de Luca Argel, músico e investigador luso-brasileiro com jeito para o samba e o protesto.
O engajamento político de Luca Argel já era óbvio no seu anterior álbum, Samba de Guerrilha (2021), e voltou a incomodar os sectores mais reaccionários da sociedade portuguesa no início deste ano, quando publicou um artigo intitulado “Peça desculpas, senhor Presidente”, no Público, ao mesmo tempo que disponibilizou online o single homónimo, o primeiro de Sabina. Interrogado sobre o que motivou a escrita de ambos, responde com a voz calma e aconchegante que conhece quem já o viu e ouviu. “Essa canção, assim como a própria história da Sabina e a ideia por detrás deste álbum, surgem das pesquisas que fui fazendo para o Samba de Guerrilha, que na verdade não nasceu como um álbum, mas como uma investigação. E continua rendendo frutos. Não se esgota.”
“A questão dos pedidos de desculpa, e de reparação, por conta do comércio de escravos que aconteceu desde o século XV até ao século XIV, e do processo de descolonização, não é nova. Há otícias de países e instituições que fizeram pedidos de desculpas desde o final do século XX, na Europa, em África, na América do Sul, na América do Norte. A igreja católica já fez, a igreja anglicana já fez, até algumas empresas já fizeram. Enfim, é um [tema] que, à medida que o debate académico sobre os processos de descolonização no mundo vai avançando, passa para a esfera pública, para o debate da sociedade em geral”, continua o cantor.
“Acho [isso] uma coisa bastante saudável em matéria de democracia, de direitos humanos, de educação também. E fiquei muito espantado quando descobri que, dos países que participaram mais da história da escravatura mercantil, com Portugal e Espanha no topo da lista, esses dois são justamente os que menos sinalizaram a possibilidade de um pedido de desculpas público oficial.” Com as suas palavras, pretende acelerar ou pelo menos contribuir para este debate. Sabe que há quem resista, e que esses sectores são muito vocais, mas não teme que uma discussão pública venha a ser contraproducente.
Apesar de saber o que aconteceu no Brasil e reconhecer que as atitudes revanchistas da direita – que lá foi confrontada mais cedo com estas questões – a par de factores sócio-económicos e da inevitável pressão externa (que, directa ou indirectamente, fomentou o golpe que depôs Dilma Rousseff e o processo judicial irregular que prendeu Lula da Silva) conduziram à eleição de Jair Bolsonaro, acredita que os horrores da ditadura estão mais frescos na memória dos portugueses. Não por estarem mais próximos no tempo – antes pelo contrário; Portugal afastou a direita do poder antes do Brasil e de Espanha – mas por ter sido uma revolução a pôr um ponto final no salazarismo. “O Brasil não teve um 25 de Abril. E acho que isso nos prejudica muito. Um povo que tem noção da própria história, que não deixa que a memória do passado se perca, é uma presa muito mais difícil para os discursos autoritários”, considera.
Foi precisamente para “não deixar que a memória se perca”, e porque o passado tem lições preciosas para ensinar ao presente, que decidiu ancorar o novo disco na história de Sabina. “Se [ela e] suas colegas tentassem, sozinhas, tomar as ruas e protestar contra a injustiça cometida, provavelmente sofreriam outras ainda piores. Quem detinha esse privilégio [de protestar] eram os estudantes brancos. Mas que eles tenham-no usado, e que isso tenha gerado um evento estranho e extraordinário no quotidiano da cidade, é ao mesmo tempo triste e belo”, lê-se no texto que apresenta o disco. “Belo porque é sempre bela a empatia tornada em ação. Triste porque esse caminho deveria ser a regra, jamais o extraordinário.”
Mas Sabina não é apenas um disco. “Percebi desde o início que era uma história rica. Que podia ser muitas coisas”, conta. E é. Se o anterior Samba de Guerrilha foi acompanhado por um jornal, as novas canções surgem ao mesmo tempo que uma banda desenhada, desenhada e adaptada por Allan Matias, a partir de A Cidade da Sabina, de Luiz Antonio Simas. Luca pensava que fazer uma banda desenhada ia ser fácil. Mas só porque não estava suficientemente familiarizado com o meio. “Pensava que tinha de meter todo o texto nos quadrinhos da banda desenhada, e foi o Alan que me mostrou que isso não era preciso. Ia ser redundante”, confessa o cantor e compositor. “Foi um ano de pesquisa e experiência até encontrarmos aquela forma de contar a história.”
Não se pense, contudo, que este trabalho de pesquisa e investigação se resume às componentes textuais e narrativas dos projectos do músico luso-brasileiro, que se mudou para Portugal há quase 11 anos para fazer um mestrado e acabou “ficando”, como gosta de dizer. “Também fiz uma pesquisa musical dos ritmos usados no candomblé, na música religiosa, que é algo que está muito presente no samba, mas nem toda a gente reconhece”. Isso influenciou o som das novas canções, que hoje se afastam do samba e aproximam de outras músicas afro-brasileiras, mas também de algum rock e até do jazz. “[Trabalhei] na senda de outros artistas e bandas que fizeram a mesma pesquisa”, confessa. “Uma delas foram os Metá Metá, que até já tocaram em Sines. Eles misturam esses ritmos africanos com uma música mais rock, mas muito mais pesada do que o meu disco.”
B.Leza. Qui 23. 22.00. 10€