Dez anos é muito tempo, mas seis meses pode ser muito mais. Depende. Ocupando-nos com projectos que nos façam felizes, como fez Madalena Palmeirim desde que venceu o Jovens Criadores de 2009, uma década é um instante. Por outro lado, seis meses de atraso no concerto de apresentação do primeiro álbum a solo, com um confinamento pelo meio, são uma eternidade. Right As Rain deveria ter sido tocado ao vivo em Abril, mas só o será neste sábado, 7 de Novembro, no jardim de Inverno do São Luiz. Madalena cantará as suas canções itinerantes – do folk para o rock, do samba para a morna – ao piano, ao ukelele, ao cavaquinho e à autoharpa, com Manuel Dordio (guitarra), David Santos (contrabaixo) e Nuno Morão (bateria) na retaguarda, e muitos convidados: Ana Luísa Valdeira, Bernardo Palmeirim, Giulia Gallina, Gonçalo Castro, Inês Pimenta, João Teotónio, Miguel Bonneville e Sara Carinhas. Dada a “natureza caleidoscópica” do disco, não poderia ser de outra forma.
Right As Rain vai ser apresentado ao vivo um ano depois de ter sido editado. Vai chegar ileso a palco?
Acho que ninguém sai ileso de um ano destes, mas a vontade de o apresentar ao vivo, com convidados e com público, disparou. O concerto de lançamento no São Luiz era para já ter acontecido em Abril, é já uma festa adiada. E como entretanto houve tempo e o tempo faz sempre das suas, há canções do disco que vão aparecer transformadas, com novos arranjos, e há outras canções novas que vão começar a ganhar vida lá pelo meio.
Como foi o período de confinamento? Revisitações melancólicas, olhos postos no fundo do túnel, com novas ideias e composições, ou um pouco de tudo?
Teve de tudo… muita música, mas muito silêncio também. Foi uma altura de grandes polaridades e foi um período de introspecção bem largo, que tanto deu para olhar para trás, como para a frente. O isolamento humano foi duro, sei que na música também apertou. Não por acaso em Junho lancei o “No jardim com”, uma série com quatro episódios que foi basicamente um pretexto para desconfinar e juntar ao pé, mas com distância, diferentes convidados para tocarem e cantarem comigo. Diria que até foi um período bem voltado para o futuro. Apesar da quarentena e dos cancelamentos continuámos a trabalhar na promoção do disco a partir de casa, com directos e em festivais online, mas também aproveitámos para empurrar para a frente novos projectos, como foi o caso das Rainhas do AutoEngano.
As Rainhas do AutoEngano [Madalena Palmeirim, Zoe Dorey e Natália Green] conheceram-se pouco antes da quarentena e já se estrearam ao vivo, em Setembro.
Tínhamos estado juntas uma única vez, mas foi logo um encontro bem imediato. Conhecemo-nos num jantar em casa da Zoe em que sobrámos as três para o fim da noite e daí já estávamos a compor juntas. Durante a quarentena fomos namorando e alimentando as canções à distância. Entretanto quisemos experimentar tocá-las ao vivo, e percebemos que não tínhamos tempo a perder: vamos para estúdio. Muito em breve haverá single aí a estalar.
Este próximo espectáculo tem muitos convidados. Não se sentiu tentada a acrescentar Natalia Green e Zoe Dorey ao cartaz?
Não posso dizer que não tenha pensado e até tentado, mas tivemos de deixar cair a ideia simplesmente por uma questão de falta de tempo no alinhamento. Eu por mim juntava muitos mais em cima do palco e fazia um concerto interminável mas, agora, teatros como o São Luiz têm de lidar com a questão das saídas e entradas de público de forma a não se cruzarem e, portanto, estamos com regras apertadas. Mas podem juntar-se às vozes delas no público. Vamos precisar!
Dois convidados surpreendentes, tendo em conta que estamos a falar de um concerto, são Miguel Bonneville e Sara Carinhas – mesmo sabendo que entram no disco. Podemos esperar mais do que uma simples actuação ao microfone?
Sim, podem parecer dois nomes fora do circuito mas, além de terem vozes belíssimas, já ambos colaboraram com diferentes músicos. O que me interessou mais ao convidá-los foi encontrar uma expressividade diferente em intérpretes que, como a Sara e o Miguel, fazem da voz um instrumento mais amplo, entre o uso da palavra falada e da cantada. Confesso que não lhes pedi nenhuma surpresa encenada, mas são bem capazes disso.
Queria misturar géneros e línguas. Sair da lógica mercantil que normalmente procura discos que têm um género definido e experimentar provocar essa confusão entre fronteiras.
O seu irmão, Bernardo Palmeirim, também subirá a palco. É o regresso possível, instantâneo, de Nome Comum?
Nome Comum é daqueles projectos que não terá nem fim nem regresso, não nos livramos assim tão facilmente um do outro. Na verdade estamos ambos com menos tempo e estamos a trabalhar com maior folga, mas posso dizer que um segundo álbum é iminente, isso sim, até porque temos já as canções na gaveta. Até lá podem ouvir-nos a interpretar o tema “Farewell”, que eu gosto tanto de ouvir o Bernardo cantar.
Do primeiro registo com Nome Comum até este primeiro disco a solo, dez anos depois, desdobrou-se em projectos, parcerias e colaborações. Era um caminho necessário para chegar a Right As Rain?
Não diria propriamente necessário, até porque esse caminho foi pouco premeditado, foi-se fazendo. Andava ocupada com projectos que me faziam feliz e na verdade não sentia uma urgência absoluta em lançar-me a solo. Agora olhando para trás percebo que o disco só existe tal como é por causa desse percurso por diferentes paisagens e dos diferentes encontros que daí foram surgindo. Não só a natureza caleidoscópica e colaborativa do disco como também algumas canções, como a “Limbo”, que nasceram dentro de outros projectos.
O contexto de onde vem, com uma família ligada à música, e tendo começado a tocar tão cedo, tornou-a mais conscienciosa do resultado que procurava para este registo?
Desde cedo que ganhei muita admiração pela música e muito respeito pela profissão. Devo isso à minha família e, claro, ajuda crescer com pessoas que nos vão mostrando mais mundo, mesmo que às vezes não seja o nosso. Mas sinto que são referências e ferramentas que vamos levando connosco, para fazermos delas o que quisermos, sem obrigação nem dever.
Right As Rain é um disco com um leque muito aberto. É a síntese do seu percurso até agora, ou fez dele um plano de intenções, com todas as suas paixões musicais?
Não o pensei em jeito de síntese, já sabia que queria misturar géneros e línguas e isso tornou-se um foco. Uma carta de intenções. No fundo, sair um pouco da lógica mercantil que normalmente procura discos que têm um género definido e experimentar provocar essa confusão entre fronteiras. É um espaço que gosto de lembrar, do que fica entre, e que é sempre mais surpreendente. E também é uma óptima interjeição – entre! –, sinal de que a porta está aberta.
O que a faz deambular entre o português e o inglês?
Gosto de deambular por mais línguas ainda. Acho que o que gosto mais é desse jogo fonético, de brincar com sons novos e com a musicalidade que cada língua tem. Quanto menor o domínio e a compreensão que tenho com a língua, maior a liberdade e a atenção que tenho para com os seus sons. Entre o português e o inglês, especificamente, que são as línguas que domino melhor, há também diferenças na métrica, com a língua inglesa a usar palavras bem mais curtas. E esse ritmo mais rápido às vezes pode ser, ou não, favorável à composição. Por isso gosto de ter várias opções.
Numa época em que a apropriação cultural é um tema pontiagudo, cortante, como é que tem sido recebida a morna “M’ Câ Sabê”?
Tenho tido reacções maravilhosas, de apoio e de agradecimento por as fazer lembrar “nha terra”. Isso, para mim, é tudo. Essa canção veio do exercício de transformismo de um fado, do meu querido amigo Pedro Faro e que eu já cantava, numa morna. Foi e é um gesto em jeito de homenagem. Na altura tive muito receio, mas fiz o que soube e o que pude para chegar o mais perto possível de um universo que eu admiro e que quero conhecer melhor. A apropriação passa a ser terrível quando deixa de existir essa admiração, essa exaltação, e quando deixa de ser um intercâmbio.
São Luiz – Teatro Municipal (Lisboa). Sáb 16.00. 12€