Pete Kember, mais conhecido por Sonic Boom, é um nome histórico do rock e da música experimental anglo-americana. Ainda não tínhamos falado com ele desde que veio viver para Portugal há meia dúzia de anos – a última conversa com a Time Out foi em 2014 – e aproveitámos uma actuação em Lisboa para dar dois dedos de conversa. Pete parece entusiasmado com um novo projecto, que define como uma espécie de clube social, e vai ocupar o espaço do Santo, um restaurante na Praia das Maçãs, duas vezes por mês.
Não haverá muitos nomes assim, que tanta gente tenha inscrito nas prateleiras lá de casa e não saiba bem quem é. Não é dizer de Mário Barreiros que é um desconhecido, longe disso. Simplesmente não é tão popular quanto o seu trabalho. É sobretudo um músico famoso entre os músicos portugueses e lendário entre quem presta atenção aos detalhes da música portuguesa. O nome está gravado em mais de 300 discos, em muitos deles creditado como produtor e engenheiro de som, e entre esses estão alguns dos maiores marcos da pop-rock portuguesa das últimas décadas, de Mingos & Os Samurais, de Rui Veloso, a Viagens, de Pedro Abrunhosa, de Silence Becomes It, dos Silence 4, a O Monstro Precisa de Amigos, dos Ornatos Violeta.
Mas Mário é bem mais que isso. É um instrumentista dotado, um compositor inspirado, é fundador dos Jafumega, é membro de The Gift e um apaixonado por boa música pop. E é, sobretudo, um grande músico de jazz, a sua escola maior, aonde regressa agora com um disco em nome próprio, o primeiro em 15 anos. Chama-se Dois Quartetos Sobre o Mar e reúne duas formações montadas ao redor da sua bateria. O Quarteto Pacífico, com Carlos Barretto (contrabaixo), Abe Rábade (piano) e Ricardo Toscano (sax alto); e o Abissal, com Demian Cabaud (contrabaixo), Miguel Meirinhos (piano) e José Pedro Coelho (sax tenor). O ponto de partida e inspiração para esta criação colectiva foi um documentário sobre o futuro ameaçado dos oceanos. Daí, explica o próprio Barreiros, “foi nascendo este trabalho de duas moods distintas, ora com o Quarteto Pacífico, com uma toada mais romântica, ora com o Quarteto Abissal, mais exploratório de águas densas e profundas”.
Esta é apenas parte possível de uma conversa que navegou entre o disco e tudo o resto, mas se limitou a chapinhar à superfície. Porque a vida de Mário é um mar de histórias da música.
Este disco, Dois Quartetos Sobre o Mar...
Gostaste da capa?
Ainda não tenho o disco físico...
Oh! Tens de ver com atenção. Fui eu que fiz, pá. São fotografias minhas.
Não sabia.
Faço fotografia há já quase 40 anos, desde os anos 80. Eu moro na [Praia da] Aguda... Estas imagens da capa são a 200 metros da minha casa. A imagem que está na bolacha é uma lua, que eu às vezes fotografo com uma teleobjectiva. Como isto é o primeiro disco da minha editora, se calhar os fundos vão ser todos assim, luas. Porque isto, a música, também é de luas.
Ia começar por aí. Desde 2007 que não havia um disco em nome próprio.
É verdade.
Porquê tanto tempo e porquê agora?
Porquê... É uma estupidez, eu sou muito esquisito comigo próprio e tenho uma grande dificuldade em gostar daquilo que faço. O que por um lado me dá alguma exigência e vontade de trabalhar mais, mas depois trava demasiado as coisas. Por exemplo, tenho uma gravação estupenda, que nasceu de uma encomenda de Serralves, para o Jazz no Parque. Fomos para estúdio... Imagina: o trompetista é agora aí um dos craques mundiais, o Avishai Cohen, depois eu na bateria, o Carlos Barreto no contrabaixo, o Abe Rábade no piano, o Perico Sambeat [sax alto], o Ben Van Gelder [também sax alto], que é um miúdo holandês fantástico, ele gravou metade, o Perico a outra metade, e o Jesús Santandreu, que é um sax tenor espanhol também muito bom. Portanto, tenho esse disco, em sexteto com essa gente, na gaveta. Tenho de o editar um dia destes.
Mas então criou uma editora agora?
Sim, é fácil, basta registar um nome. Mário Barreiros Editora, muito original [riso]. Eu também não sou músico de jazz a tempo inteiro. Tento tocar todos os dias um bocadinho, mas às vezes não dá, tenho muitas solicitações para misturar discos. Agora tenho três misturas na mão, mais dois masters... Trabalho não falta. Ainda por cima estou a fazer um mestrado, comecei o ano passado...
Mestrado em quê?
Em interpretação artística, bateria de jazz. O primeiro semestre acabou agora, estive a terminar os trabalhos à pressa, foram uns dias infernais. Tive de ligar ao professor, a pedir algum tempo [riso]...
Mas como é que é isso para os professores? Não há a sensação de que o Mário lá podia estar a dar aulas também?
E já dei, já lá estive. Fui o primeiro professor de bateria do curso da ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo]. Quem lá está agora é o Marcos Cavaleiro, que é um belíssimo baterista. Ele é que tem a mania que eu sou melhor, mas não sou [riso]. Às vezes começa com a conversa, “oh pá, não te vou dar aula nenhuma”. E eu “não, não, mostra-me lá como é que fazes aquilo e aqueloutro e tal”. As aulas são muito engraçadas.
Mas foi à procura de um mestrado para quê, afinal?
O mestrado é um bocadinho... Bom, eu dei aulas na Faculdade em Castelo Branco e deixei de ter habilitações para dar, que agora é preciso ter doutoramento e não sei quê para ser professor adjunto. Mas com mestrado já me posso candidatar ao estatuto de especialista. São dois anos e depois posso apresentar o meu portefólio, fazer uma prova oral com um júri... E pronto, em princípio posso ser professor universitário outra vez.
Portanto foi para formalizar o canudo.
Sim. Porque eu nem a licenciatura tenho completa, mas podia candidatar-me, apresentando o currículo. Lá me candidatei e fui aceite. É o que estou a fazer agora. Gosto do que estou lá a aprender, mas sobretudo estou a aprender a escrever. Escrever tem sido o melhor que me tem acontecido.
Escrever música? Mas...
Não, pá. Escrever mesmo. Aprendi finalmente a mexer no Word como deve ser, a pôr lá as citações todas, fazer os índices, bibliografia... É bestial.
Voltemos atrás. Tem então um disco na gaveta desde 2009.
É verdade. Uma estupidez. Chama-se Kind Steps.
Os discos hoje são mais montras do que outra coisa.
Eu continuo a gostar de ouvir discos. Mas deixei de ouvir tanto em suporte físico, confesso. Aliás, acho que esta moda do vinil não faz sentido nenhum. Quer dizer, faz sentido se tiveres gravações da era analógica. Eu ainda tenho uns 500 discos. Mas, hoje em dia, que sentido faz uma gravação que é digital – são todas digitais – ir depois para um suporte cuja relação sinal/ruído é na ordem dos 50 dbs? A qualidade é pior. Se a gravação for analógica, não for ao digital e passar logo para o vinil, faz algum sentido. Agora, sendo uma gravação digital... Um CD ou um ficheiro wav 96/24 é melhor do que qualquer disco que faças na melhor fábrica do mundo.
É moda?
É moda. É um objecto bonito, o mais bonito. Eu também gosto. Tenho gira-discos e oiço discos, mas não percebo. Mas quem sou eu para estar a dizer isto – a mim pagam-me para fazer masterizações para vinil e eu faço... Enfim, estou sempre a divagar um bocadinho.
A divagar se vai ao longe. Tem ideia exacta de quantos discos já produziu?
Participei em mais de 300 discos. Quantos produzi, não sei... Um terço? Talvez um terço.
As solicitações para produzir continuam a ser muitas?
Muito menos, mas não me queixo, tenho muito trabalho, e hoje estou mais dedicado a ser músico.
Na produção, o Mário Barreiros também foi uma moda.
Como produtor fui. Toda a gente queria trabalhar comigo, pá. Mas quando estive na moda, anos 90 e 2000, cometi um erro. Porque naqueles anos em que toda a gente queria gravar comigo, eu não toquei. E senti-me mal com isso. Não posso deixar de tocar. Eu agora produzo menos, toco mais, e para mim é uma felicidade. Quando o Nuno Gonçalves me convidou para fazer parte dos Gift, pensei: “até que enfim vou tocar outra vez”. E hoje há mais produtores. O Benjamim, por exemplo, o Nuno Rafael... Gente mais nova, muito talentosa e que está muito activa. Eu tive sorte na altura.
Estava aqui a pensar que, se lhe creditassem as vendas de todos os álbuns que produziu, era capaz de ser o músico que mais vendeu no país.
Talvez, talvez. Se vivesse em Espanha ou nos Estados Unidos era capaz de estar rico [riso]. Mas não estou. Depois fiz um estúdio grande [MB Estúdios], pus lá o dinheiro que tinha e o que não tinha, era o meu sonho, fazer um estúdio de dimensão internacional. Depois acabei por vendê-lo ao Pedro Abrunhosa [hoje, Boom Studios].
De todos esses discos, há algum pelo qual tenha um especial carinho?
Eh pá, não. Tanta coisa tão diferente, tanta experiência incrível à sua maneira. Sei lá... nunca procurei a obra-prima, a peça favorita... Acho que o Viagens é um caso de coincidências felizes. O Viagens era para sair mais cedo, em 1993 [saiu em 94], o Pedro [Abrunhosa] convidou-me, mas eu na altura andava com o Rui Veloso, desde 1991, com o Mingos & Os Samurais...
E de repente saltou entre dois dos discos mais vendidos da história da música popular.
É verdade... As pessoas hoje em dia sofrem de um mal, sabes? Normalmente satisfazem-se com as coisas à superfície, o frontman, a estrela e tal. Mas depois quem vai um bocadinho mais fundo começa a olhar para pormenores e a descobrir as histórias dos discos, que são uma maravilha.
O Mário deve ser um dos músicos mais conhecidos entre os músicos portugueses. Mas entre o público, não...
É o que te digo, as pessoas ficam pela superfície, é natural. Por causa da televisão, talvez, só querem saber de quem está à frente [riso]. No jazz toda a gente se conhece uns aos outros, quem toca e não toca, quem gravou com quem. A música pop, desse ponto de vista, é o pior. As pessoas só querem saber do frontman e de quem ganhou o prémio. É uma pena.
Mas sente-se bem nesse lugar?
Ah, sim, muito. Nunca tive jeito para estar à frente, de qualquer modo. Há pessoas que, pelo seu feitio, são mais frontmen do que outras. Acho que se cantasse bem me punha lá à frente [riso]. Mas mesmo que cantasse acho que seria um artista... recolhido, um pouco low profile. O meu irmão mais velho, o falecido Eugénio, era assim, um excelente cantor, mas muito discreto. Eu adoro o canto. Mas o canto popular, não gosto do canto jazz nem do canto lírico. Por exemplo, sou fã incondicional do Milton Nascimento, da discografia dele ali nos primeiros dez anos. Cá temos a Amália... O Camané, que eu acho que é o único ao nível da Amália, outro prodígio. No jazz há pouca gente que eu ache prodigiosa. O Sinatra, a Ella Fitzgerald, que é talvez a única cantora em que eu suporto o scat. Acho o scat uma idiotice do caraças, que não tem pés nem cabeça [riso]... Mas a Ella Fitzgerald tem graça... Tenho esse defeito, sei muito bem as coisas de que gosto e as de que não gosto. Mas onde é que nós íamos...?
Íamos por aí. Mas talvez seja melhor irmos ao disco.
Sobre o disco, que posso eu dizer? Posso te dizer que os temas não são o mais importante num disco de jazz. O mais importante é a conversa que se consegue criar. Acho que este disco é bastante rico nesse aspecto. Gosto dele.
Quanto de improviso há aqui?
Eh pá, está em tudo. O tema mais aberto, que tem menos estrutura, é o primeiro do Quarteto Abissal, chama-se “El Árbol Negro”, do Demian Cabaud. É um dos meus favoritos, é o maior, tem uns oito minutos, mas é um tema denso, explosivo, um bocado coltraneano, daquela fase modal do quarteto do Coltrane. A estrutura é muito aberta, harmonicamente quase tudo é possível, se ouvires o solo do Zé Pedro [sax], ele passa por várias tonalidades. Há ali um tempo que é muito improvisado. Aquele take surpreendeu-nos um pouco. Aquilo vai crescendo, há uma cacofonia...
Não é fácil de entrar.
O jazz em si é uma música um bocado difícil. Não é por acaso que a maior parte dos músicos de jazz tem ouvido absoluto. Ouvido absoluto têm 1% das pessoas, depois aquilo vai evoluindo até ao ponto contrário...
Até ao ouvido absurdo.
[Riso] Isso. Mas repara, há pessoas que têm até dificuldade grande em perceber a diferença dos sons, etc. É por isso que a música ligeira é mais popular. Porque é mais fácil de ser reconhecida. Quando reconheces uma coisa, relaxas, “ok, já estou em casa”. Por isso o jazz é uma música de minoria, é muito para pessoas que têm um ouvido rápido, que se entretêm com esta coisa dos dribles do fraseado. Enfim, e entre essas também há as que não gostam de jazz, não é forçoso gostar-se disto. Mas o jazz pode ser uma música magnífica. É como tudo, também tem aqueles gajos brinca-na-areia, que andam ali às voltas e não chegam a lado nenhum, também pode facilmente ser uma música um bocado circense. Mas os melhores músicos de jazz não são assim, fazem uma música que faz ressonância em nós... Sinto que já me perdi outra vez...
Era essa a pergunta que queria fazer: o que é que fica de um tema como esses na música instrumental, que possa ser escutado como mensagem?
Eu ainda não sei muito bem... É preciso alguma distância para perceber isso. O que sei é que gosto muito do que ficou. E, provavelmente, pelo facto de tudo ter nascido com um foco, de eu ter dito a toda a gente “pá, vamos falar disto”...
Há pouco dizia que o streaming anula o sentido de estar a acumular discos, e no entanto eis aqui um disco que é a negação disso: sem ter o objecto físico não tenho acesso a metade da obra, do pensamento e do trabalho que está à volta.
Isso é verdade. Continuamos a usar livros e continua a ser a melhor maneira de usar a leitura. E este disco é um livrinho. Isto atrasou muito porque queríamos que a capa fosse coleccionável. Repara, isto é um disco de jazz, feito rapidamente. Duas das últimas sessões foram feitas em vídeo também. Por coincidência, todos os takes que estão em áudio no disco são os que estão em vídeo. Nós gostamos mais dos últimos. A última sessão para nós foi a que correu melhor, em qualquer um dos quartetos. Vão sendo publicados no Youtube, os oito temas, de 15 em 15 dias. E os textos estarão disponíveis junto com o vídeo no Youtube, também. Depois há uma pequena introdução que tem também um link para um pdf da capa.
Mas é um dos efeitos do streaming. Progressivamente perde-se a noção de obra, de conjunto.
Sim, sim, perde-se. Tudo é mais fragmentado, ouve-se canção a canção, tema a tema. E eu sinto muita falta das liner notes, dos textos que estão associados, de saber quem gravou, como e quando.
Aqui decidiu publicar também as pautas, que é um passo mais à frente ainda nessa partilha.
Sim. É também por um efeito estético, reconheço [riso]. As pautas são bonitas. Mas sim, tudo aberto. Só há uma pauta, a do “Abissal”, que é tão grande que não deu para pôr completa. Falta uma página. Se houver interesse, o José Pedro Coelho [saxofonista, compositor do tema] fornece a quem quiser [riso]. Mas, no fim de contas, acho que tens razão: a capa, o objecto físico, tem uma graça que não se imita. E enfim, o mais importante de tudo isto não é o que eu tenho estado para aqui a falar, o meu activismo pelos oceanos e a capa e tal...
É a música...
O mais importante é a música e eu gostei de ouvir este disco. Acho que me preparei bem. A pandemia, no meu caso, valorizou-me. Passei a ter muito mais tempo, tive muito menos encomendas para fazer trabalhos, tive de ir ao mealheiro, como é evidente. Mas tive muito mais tempo para tocar, estou em muito boa forma, a tocar melhor do que tocava há uns anos. Porque, de repente, de há dois anos para cá comecei a estudar todos os dias várias horas. E, um pouco secretamente, com aquela ideia de que era ou vai ou racha, e tinha de acontecer este disco. Porque, lá está, sou um bocado perfeccionista, o que é uma coisa um bocado estúpida...