Great Wave off Kanagawa
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Dez obras clássicas de inspiração marítima

O mar entra pelo Mosteiro dos Jerónimos dentro, com um programa da Orquestra Metropolitana que comemora os 500 anos da viagem de Fernão de Magalhães.

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“Ondas do Mar de Vigo,/ Se vistes meu amigo?/ E ai Deus!, se verá cedo?” – assim começa uma célebre cantiga de amigo do trovador galego Martin Codax, datada da viragem dos séculos XIII/XIV e que constitui uma das mais antigas manifestações da inspiração marítima na história da música. Em geral, os compositores da Idade Média e Renascença não dedicaram muita atenção ao mar e seria preciso esperar pelo Barroco para que o mar – quase sempre revolto – impusesse a sua presença. Na primeira metade do século XVIII, era rara a ópera que não incluísse uma aria di tempesta, um momento em que a personagem comparava o tumulto na sua alma ao desvario das ondas e do vento numa tormenta marítima, com a música a acompanhar as palavras com rajadas caprichosas e vagas alterosas. No Classicismo a temática marítima perdeu força, mas regressou em força no Romantismo e no Impressionismo da viragem dos séculos XIX/XX.

Muitas destas obras foram compostas em terra firme, sem mar à vista e sem que os compositores tivessem vínculos fortes ao mar ou experiências marítimas intensas. O único compositor com carreira marítima foi Nikolay Rimsky-Korsakov, que se tornou oficial da Marinha Imperial Russa e, em 1862, com 18 anos, embarcou num cruzeiro de dois anos e oito meses a bordo do clipper Almaz, que passou por Londres, Nova Iorque e Rio de Janeiro e durante a qual trabalhou nas suas composições. Em 1873, quando já regressara à vida civil, a Marinha Imperial criou expressamente para ele o posto de Inspector das Bandas Navais, cargo que ocupou durante 11 anos (sem ter de molhar os pés).

O mar entra pelo Mosteiro dos Jerónimos dentro

Mosteiro dos Jerónimos. sex 19 de Julho 21.30.

Dez obras clássicas de inspiração marítima

Wassermusik, de Telemann

Género: Suíte orquestral
Estreia: 1723, Hamburgo

A “Música Aquática” mais famosa é a de Handel, mas trata-se de uma peça “de água doce”, pelo que não tem aqui cabimento. A Wassermusik de Telemann (também conhecida como Hamburger Ebb’ und Flut) não é menos inspirada e evoca mais explicitamente o meio marítimo. Destinou-se a celebrar o centenário da fundação do Almirantado da cidade de Hamburgo, entidade responsável pelo bom funcionamento, segurança e defesa do porto e seus acessos. A Suíte (com o n.º de catálogo TWV 55:C3) composta por Georg Philipp Telemann (1681-1767), então a mais prestigiada figura musical de Hamburgo (e da Alemanha), mescla a tradição marítima da cidade na foz do Elba com a mitologia clássica e tem andamentos com títulos como “Tétis adormecida”, “O despertar de Tétis”, “Neptuno apaixonado”, “Náiades brincalhonas”, “Tritões brincalhões”, “Eolo tempestuoso”, “Zéfiro aprazível”, “Fluxo e refluxo [da maré]”, “Os marinheiros folgazões”.

[Andamento VI: “Harlequinade: Der Scherzende Tritonus”: Os tritões brincalhões. Pelo Ensemble Zefiro, ao vivo no festival Monteverdi de Cremona, 2015]

La Tempesta di Mare RV 253, de Vivaldi

Género: Concerto para violino
Publicação: 1725, Amesterdão

O mar e, em particular, as suas tempestades foram um assunto recorrente na ópera e nos concertos de Antonio Vivaldi (1678-1741), a que talvez não seja alheia a sua condição de veneziano, pois o destino da cidade esteve, durante séculos, indissoluvelmente ligada ao comércio e poderio marítimos. Há três concertos de Vivaldi com o título La Tempesta di Mare, um dos quais é este Concerto para violino RV 253, o n.º 5 da colecção Il Cimento della’Armonia e dell’Inventione op.8. Poucos compositores foram capaz de transpor para música de forma tão vívida a ventania desabrida e as ondas alterosas.

[Concerto RV 253, por Fabio Biondi (violino e direcção) e Europa Galante, numa gravação para a Virgin Classics, agora reeditada na caixa Concerti, na Erato. A capa do disco que surge no vídeo gera equívocos, pois a Tempesta di Mare nele contida é o Concerto RV 570 – que não é inferior, em nada, ao RV 253]

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Meeresstille und Glückliche Fahrt, de Beethoven

Género: Cantata
Estreia: 1815, Viena

No tempo da navegação à vela, as borrascas eram temidas, mas as calmarias podiam revelar-se não menos problemáticas. Disso dá conta a I parte de Meeresstille und Glückliche Fahrt (Mar Calmo e Viagem Próspera), de Ludwig van Beethoven (1770-1827), sobre dois poemas de Goethe: “Uma profunda calma reina sobre as águas/ Imóvel se queda o mar/ E triste o marinheiro mira/ A superfície espelhada que o rodeia/ De lado algum sopra uma brisa!/ Mortal e terrível é a calmaria!/ Até onde a vista alcança/ Nem uma onda se agita”. Na II parte, soltam-se os ventos, enfunam-se as velas e o navio retoma o seu curso.

[Pelo Coro & Orquestra da Berliner Rundfunks, com direcção de Helmut Koch, 1970; o vento começa a soprar por volta de 3’40]

Meeresstille und Glückliche Fahrt, de Mendelssohn

Género: Abertura de concerto
Estreia: 1828, Berlim

O mesmo par de poemas de Goethe inspirou Felix Mendelssohn a compor uma “Abertura de concerto” – algo, na prática, indiferenciável de um poema sinfónico, ou seja, uma peça orquestral autónoma, com um programa subjacente.

[Pela Orquestra da Gewandhaus de Leipzig, dirigida por Kurt Masur; a brisa começa a levantar-se por volta dos 6’00; ao 10’29, uma fanfarra assinala a chegada do navio a bom porto]

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As Hébridas, de Mendelssohn

Género: Abertura de concerto
Estreia: 1833, Londres

Mendelssohn pintaria uma paisagem marítima mais inspirada (e famosa) poucos anos depois, com The Hebrides (também conhecida por Fingal’s Cave), que lhe foi inspirada por uma viagem à Escócia em 1829 e em particular pela Gruta de Fingal, na ilha de Staffa, nas Ilhas Hébridas, uma “catedral natural”, de natureza basáltica, que tem o poder de amplificar de forma fantasmagórica o ruído das vagas que se quebram no seu interior. A peça não tem um programa definido, oferecendo sugestões impressionistas da agitação marinha.

[Pela Orquestra Sinfónica de Londres, com direcção de John Eliot Gardiner]

O Navio Fantasma, de Wagner

Género: ópera
Estreia: 1843, Dresden

Tal como Mendelssohn, também Richard Wagner foi buscar inspiração a uma viagem por si realizada, entre Riga e Londres, em 1839, fugindo aos credores que lhe atormentavam a vida no porto báltico. Uma tempestade surpreendeu o navio no Mar do Norte, forçando-o a buscar abrigo nos fiordes noruegueses e fazendo a viagem, que deveria durar uma semana, estender-se por três. Der Fliegende Höllander (conhecida em português por O Holandês Voador ou O Navio Fantasma) conta a história de um capitão condenado a vaguear pelos mares por toda a eternidade com o seu navio de velame cor de sangue e tripulação de esqueletos, por, numa tempestade, ter invocado Satanás. Foi-lhe, porém, concedida uma oportunidade para se libertar desta maldição: de sete em sete anos, as correntes e os ventos empurrarão o seu navio para terra e se o capitão encontrar uma mulher que queira partilhar o seu destino encontrará a redenção.

[Abertura, pela Filarmónica de Berlim, com direcção de Herbert von Karajan, 1974]

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La Mer, de Debussy

Género: “esquisso sinfónico”
Estreia: 1905, Paris

La Mer é uma superfície alterosa e em permanente mutação, tão cintilante e efémera como o brilho do sol sobre as vagas, mas a sua composição foi iniciada na Borgonha, bem longe da costa. Costuma mencionar-se que a obra foi concluída no Grand Hotel de Eastbourne, com vista sobre o Canal da Mancha, e é verdade que Claude Debussy aí esteve alojado no Verão de 1905, mas nessa altura a obra estava essencialmente concluída e a estadia em Eastbourne serviu apenas para fazer revisões na partitura. Tudo o que ela contém de marinho proveio da imaginação de Debussy: não pretende ser uma descrição realista de um programa de carácter marinho, mas um reflexo do que a ideia de mar suscitou na mente do compositor. É uma obra de uma audácia e riqueza deslumbrantes e poucos foram os compositores posteriores que conseguiram subtrair-se à sua influência quando compuseram partituras de inspiração marinha.

[III andamento, “Dialogue du Vent et de la Mer”, pela Orquestra do Festival de Luzern, com direcção de Claudio Abbado, Luzern, 2003]

Une Barque sur l’Océan, de Ravel

Género: peça para orquestra
Estreia: 1907, Paris

Em 1904-5, Maurice Ravel compôs Miroirs, uma suíte de cinco peças para piano. Pouco depois da estreia, em 1906, Ravel orquestrou a n.º 3, “Une Barque sur l’Océan”, sendo apresentada pela primeira vez nessa forma em Fevereiro de 1907. Ravel viria a renegar esta orquestração, embora seja difícil perceber porquê. Tal como La Mer, de Debussy, é uma peça em incessante movimento, feita de linhas ondulantes e salpicos de espuma e onde a efémera cintilação da luz sobre a água se sobrepõe à longa e poderosa pulsação das grandes vagas. Este não é, seguramente, um mar flat.

[Pela Orquestra Sinfónica de Montréal, com direcção de Charles Dutoit]

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A Sea Symphony, de Vaughan Williams

Género: sinfonia
Estreia: 1910, Leeds

O início do século XX foi pródigo em peças de inspiração marinha e é natural que muitas tenham surgido na Grã-Bretanha, uma nação-ilha que, por aquela altura, era incontestavelmente, a maior potência marítima do mundo. Uma das mais notáveis dessas obras é Sinfonia n.º 1 A Sea Symphony, de Ralph Vaughan Williams (1872-1958), que resultou da coalescência e desenvolvimento de várias canções orquestrais compostas entre 1903 e 1909, sobre poemas de Walt Whitman. É uma obra imponente, com 70 minutos de duração, que requer, além da orquestra, uma soprano, um barítono e coro.

[III andamento, “The Waves”, pelo Coro & Orquestra Filarmónica de Londres, com direcção de Bernard Haitink, numa gravação de referência realizada para a EMI (hoje na Warner)]

Peter Grimes, de Britten

Género: ópera
Estreia: 1945, Londres

Peter Grimes tem lugar numa aldeola piscatória na costa do Suffolk, mas apesar da amplitude de horizontes físicos e do vento fresco e muitas vezes borrascoso que sopra do mar, a atmosfera psicológica é sufocante. Peter Grimes já era um outsider na povoação, mas a morte, em circunstâncias não muito claras, do aprendiz que com ele trabalhava no barco, faz com as gentes da terra o encarem com suspeição acrescida. As únicas pessoas que lhe manifestam simpatia são Ellen Orford, a professora primária, e Balstrode, um capitão reformado da marinha mercante. Na verdade, o que une Orford e Grimes é mais do que simpatia e a professora propõe ao pescador que fujam ambos daquele lugar claustrofóbico, mas Grimes teima em ser aceite pela comunidade local e crê que a única forma de o lograr é enriquecendo na faina, de forma a poder propor um casamento condigno a Orford: “Eles têm respeito pelo dinheiro/ Esses coscuvilheiros de aldeia/ Eu tenho as minhas visões/ Visões ardentes/ Chamam-me sonhador/ Troçam dos meus sonhos/ E da minha ambição/ Mas eu sei como responder-lhes”, diz ele a Balstrode. Enquanto Grimes assim vai discorrendo, uma tempestade aproxima-se e Balstrode retira-se, deixando Grimes a interrogar-se “Em que porto encontrar paz/ A salvo de ondas e tormentas?”. Orford poderia ser esse porto, mas Grimes alia uma natureza sensível a limitadas capacidades de expressão e os seus conflitos interiores e as circunstâncias adversas acabam por condenar todos os seus planos e aspirações ao fracasso. E quando surge a suspeita de que Grimes maltrata o novo aprendiz, a desconfiança das gentes transforma-se em ira justiceira.

[“What Harbour Shelters Peace?”, por Jon Vickers, um dos grandes intérpretes do papel de Peter Grimes]

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