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Os dias transgressivos dos Pop Dell’Arte

Os Pop Dell’Arte são um nome fulcral da pop marginal portuguesa. Na quinta-feira, 8 de Outubro, apresentam finalmente o álbum ‘Transgressio Global’ no CCB.

Luís Filipe Rodrigues
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“Transgressão”. Ao longo de mais de uma hora de conversa esta palavra é repetida mais de 20 vezes. “A transgressão serve de denominador comum aos diferentes temas do disco”, sublinha João Peste, vocalista, fundador e única presença constante nos Pop Dell’Arte. Transgressio Global, o seu mais recente álbum, devia ter sido apresentado em Março e depois em Maio, mas ambos os concertos foram adiados por causa da pandemia. Na quinta-feira, 8 de Outubro, vai finalmente ser tocado ao vivo no CCB.

O nome do disco ficou em latim meio por acaso – “podia ser latim, podia ser outra língua qualquer”. O que importa é a ideia que as palavras veiculam. “Há uma certa necessidade de transgressão a um nível global”, considera o cantor. De seguida, discorre sobre a globalização, algo que “a partir de um certo momento se tornou quase inevitável, por muitas razões. O que não é inevitável é a maneira como a globalização está a ser feita. Uma das coisas que se pode criticar é que ela está a ser feita só com um sentido, que há um sistema e uma cultura que é dominante.”

Não é a primeira vez que eles questionam essa hegemonia cultural. Fazem-no, de certa maneira, desde que editaram Free Pop (1987), o primeiro marco de um percurso singular. Não há muitos grupos com a sua longevidade e tão poucos álbuns gravados – Transgressio Global é apenas o quinto de originais em quase 35 anos de existência. As mudanças de formação também são constantes, e desde a edição do anterior Contra Mundum, em 2010, juntou-se mais um músico à banda, o baterista Ricardo Martins, que substituiu Nuno Castêdo. 

O percussionista dos saudosos Lobster e mais uma data de projectos é a mais recente contratação de uma instituição por onde passaram inúmeros nomes cruciais da música periférica e da pop portuguesa, como Luís San Payo, Rafael Toral, JP Simões, João Paulo Feliciano, Tiago Miranda e outros. “Cada um vai entrando, deixando o seu contributo e renovando o processo. Mas há uma identidade e uma estrutura que é coerente e se mantém desde o primeiro disco”, defende João Peste. “[Os novos músicos] são como palavras novas numa conversa que já existe há muitos anos”, completa Ricardo Martins.

É uma conversa que vamos poder ouvir ao vivo no Centro Cultural de Belém. E uma conversa que em Transgressio Global se estende por uma hora e meia e 22 faixas (menos uma na edição física), mais do que em qualquer outro disco do grupo. Aliás, mais do que em vários discos juntos. Quando se sublinha isso e aponta que estas canções podiam ter alimentado dois discos, João Peste começa por concordar. “Por acaso, podiam. Um primeiro com os temas mais antigos e outro com os que fizemos depois de o Ricardo entrar”, reconhece. “Porque este disco começou a ser feito em 2014 ou 2015 e há temas que correspondem a fases diferentes. O processo de construção das músicas foi diferente”.

“Mas a verdade é que a coisa não foi acontecendo, e foi-se acumulando, e de repente tínhamos cerca de 20 temas que faziam sentido juntos”, continua. “Isto apesar de serem muito diversificados. Alguns incidem sobre o mundo contemporâneo, como o ‘Panoptical Architecture [For Empty Streets in a Silent City]’, o ‘Style Is The Answer [To Almost Everything], o ‘Post-Romantic Lover’... Uns remetem para tempos idos, casos do hino a ‘Apollo’, o mito do ‘Hermafrodito [Não Nasceu Hermafrodita]’, o poema anacreôntico e o do Catulo, por exemplo. E há outros ainda que juntam o futuro e o passado e o presente todos num só, como o ‘In Different Times (At The Same Time)’.”

O vocalista pára nesta canção – que não é, de resto, a única onde o passado, o presente e o futuro confluem; a faixa seguinte chama-se “Minotaur meets Picasso in Lisbon in 2084”. “Não se pense que chamei ao tema ‘In Different Times (At The Same Time)’ de propósito. Surgiu naturalmente. Estávamos todos na sala, a tocar, quando comecei a cantar e, por qualquer motivo, misturei Vénus e Marte a ouvirem Sonic Youth na cama. Uma coisa muito anacrónica. Aliás, mais do que anacrónica, porque mistura um tempo mitológico com um tempo histórico”, conta João Peste. “E por acaso encaixava bem no conceito do disco.”

Este anacronismo também está presente na capa do CD, onde um busto clássico surge desfigurado sobre um fundo verde fluorescente. Pergunta-se se é uma referência directa à capa do álbum de estreia, Free Pop. A resposta é um nim. “Relação há, mas acho que não foi consciente. Não fomos procurar uma capa que fizesse uma ponte com a do Free Pop, mas é claro que depois reparámos que havia uma relação. E não vimos mal nenhum nisso”, diz o cantor. O guitarrista Paulo Monteiro toma a palavra: “É uma transgressão à capa do Free Pop.”

Crítica

Pop Dell’Arte – Transgressio Global

  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

O tempo não parece passar pelos Pop Dell’Arte. Hoje, como nos anos 80, João Peste e os seus companheiros – o co-fundador Zé Pedro Moura, o ex-Croix Sante Paulo Monteiro, ao seu lado desde os 90s, e o baterista Ricardo Martins, que se juntou em 2017 – operam nas margens da pop-rock portuguesa, mas continuam a fazer alguma da música mais relevante e destemida do país.

Transgressio Global tem o mesmo fulgor libertário e transgressivo que sempre marcou o seu trabalho. Nas suas canções escutam-se ecos do passado e do presente, enquanto se imagina o futuro. Tão depressa remetem para a antiguidade clássica como citam Foucault, tanto evocam Elvis e Bowie, Bob Marley e Ian Curtis, ou até os Sonic Youth, como cantam Victor Jara. Contudo, nunca se limitam a imitar o que veio antes. Pelo contrário. Usam as suas referências para construir algo de novo. E único.

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