A fadista Ana Moura passou os últimos anos a construir Casa Guilhermina, declaração de intenções, testemunho de coragem e vitalidade artística. Um disco de ruptura onde num momento estamos a ouvir um fado tradicional, a seguir um semba, de repente há uma batida de kizomba, dança-se um fandango e ouvem-se outras músicas portuguesas e do mundo lá ao fundo, em loop – por vezes, escuta-se tudo isto ao mesmo tempo.
Aos 34 anos, Rocío Márquez é uma das grandes referências do flamenco contemporâneo. Nascida e criada na Andaluzia, tem mais de uma década de carreira profissional e a sua música e percurso são frequentemente destacados nas páginas da imprensa espanhola. Estudou e conhece a fundo a tradição, mas não tem medo de inovar e renovar o género – para ela, o flamenco é uma manifestação cultural viva e em constante mutação. Estreia-se ao vivo em Lisboa este sábado, no Centro Cultural de Belém, onde vai apresentar o álbum Visto En El Jueves, do ano passado. Falámos antes do concerto.
Dizem que és “a voz da nova geração do cante flamenco”. O que pensas disto?
Há muitos artistas de qualidade na minha geração. Mais do que uma voz, acho que são várias as vozes que estão a actualizar o flamenco e a aproximá-lo do contexto e sensibilidade actuais.
O que achas que tu e a nova geração de que falas aportam ao flamenco?
Somos filhos do nosso tempo [e vivemos] num momento em que a realidade política, tecnológica, cultural e social está em profunda crise. Exprimimos a nossa experiência de vida neste século XXI a partir dos códigos do flamenco.
Estudaste e escreveste sobre flamenco na tua tese de doutoramento, La técnica vocal en el flamenco [A técnica vocal no flamenco]. Como é que os teus estudos te ajudaram melhorar enquanto cantora?
Acho que para cantar flamenco é necessário conhecer intimamente as fundações do género, pois trata-se de uma música complexa e com um património vasto, deixado por artistas fabulosos. Neste caso concreto, a minha investigação sobre a técnica vocal no flamenco contribuiu para me conhecer melhor e estar mais consciente da minha maneira de cantar.
Na tese, entre outras coisas, escreves sobre a forma como a menstruação afecta o canto. Porque decidiste abordar este assunto e a que conclusões chegaste?
As mudanças hormonais são muito importantes para uma cantaora, mas estranhamente ignoradas. E depois de ler o livro Diario de un cuerpo, de Erika Irusta, comecei a pensar sobre isso. Então, observei-me e apercebi-me, por exemplo, de que nos primeiros dias do período me custa um pouco mais afinar, de modo que agora estou mais atenta a isso e cuido melhor de mim.
Há quem te critique porque o teu flamenco não é puro. O que pensas disto? Essa pureza é importante?
O flamenco é flamenco precisamente pela sua impureza. Por misturar, contaminar, incluir. Não é por acaso que nasceu na Andaluzia, que pela sua situação geográfica é um caldeirão de culturas riquíssimo. É uma arte viva, num constante devir e em diálogo com a sociedade. Portanto, não partilho dessa ideia e desse conceito de pureza que quer espartilhar o flamenco e limitá-lo a um padrão fixado apenas há poucas décadas. É como sentir nostalgia porque alguém ou alguma coisa continua a crescer e não se parece com uma fotografia que tirámos a dada altura.
O que pensas de alguém que faz algo muito mais radical, ainda menos puro, com o flamenco, como a Rosalía?
Admiro muito a Rosalía. O que fez é complicadíssimo e ela tem as qualidades necessárias para defender aquilo que propõe. Parece-me valente, curiosa e muito talentosa.
Mas achas que o que ela faz ainda é flamenco?
Depende. No El mal querer escutam-se inúmeras influências e estilos de flamenco. Mas também faz canções com outras músicas que não posso considerar flamenco.
O que pensas sobre as acusações de apropriação cultural de que foi alvo?
Não concordo com elas. Eu defendo a liberdade criativa dos artistas.
A ti já te acusaram de apropriação cultural?
Não.
Falas muitas vezes do machismo no flamenco. Para mim esse machismo não é só um problema do flamenco, mas de toda a indústria musical. Dirias que o machismo no flamenco é pior do que no rock ou a música urbana, por exemplo?
Claro que não. E até iria mais longe. O machismo não é um problema apenas da indústria musical, mas de todo o nosso sistema patriarcal. Portanto é normal que qualquer instituição ou meio esteja contaminado por ele. Não acho que o flamenco seja mais machista do que outros estilos musicais, apesar de não os conhecer tão bem.