Sereias
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Sereias: “A vida não se pode resumir ao comércio e ao trabalho”

Os Sereias são um corpo de intervenção free-rock, com um novo álbum para abanar o país. Falámos com João Pires e o poeta A. Pedro Ribeiro.

Luís Filipe Rodrigues
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Na mitologia, as sereias são criaturas híbridas, normalmente meio mulheres, meio peixes. Na música portuguesa, os Sereias são igualmente híbridos, mas de punk-rock e free-jazz. É, obviamente, uma simplificação – nas suas canções o punk está presente sobretudo em espírito; há ecos do psicadelismo electrónico dos Silver Apples, do krautrock dos Can, do pós-punk dos Pere Ubu, do rock industrial dos Swans – mas termos como punk-jazz ou free-rock são bons atalhos para descrever o que se ouve nos seus dois álbuns, O País A Arder, de 2019, e o recém-editado disco homónimo ou, nas palavras da banda, “sem título”. O colectivo de geometria variável – há membros que entram e saem, com liberdade e sem compromissos – devia ter começado a apresentar as novas e incendiárias canções há dez dias, só que um surto de gripe obrigou a cancelar umas datas e a adiar outras. Em princípio, devem finalmente iniciar a tour no domingo à tarde, na Sala Estúdio Perpétuo (Porto). Ainda não se sabe quando vão remarcar o concerto de apresentação no Musicbox (Lisboa).

O novo álbum não destoa do que veio antes. Estão lá todas as influências anglo-saxónicas evocadas no parágrafo anterior e mais algumas, como os Mão Morta, de quem os Sereias podiam ser bastardos a quem deram um saxofone (e cujo vocalista, Adolfo Luxúria Canibal, assina o texto de apresentação do disco). O seu som é um espelho dos interesses de sete músicos – João Pires na bateria, Tommy Hughes no baixo, Sérgio Rocha na guitarra, Nils Meisel nos teclados, Ra-Yacov nos sopros, António Pedro Ribeiro e Arianna Casellas nas vozes – de diferentes gerações e proveniências, quase todos com outros projectos musicais e artísticos, que se cruzaram nas margens de um Porto cada vez mais gentrificado e “trazem para o contexto do grupo ideias de outros lados”, segundo o fundador João Pires.

“[A nossa música] é fruto da improvisação. No álbum tentamos reproduzir o que fazemos durante o resto do ano, nos ensaios e ao vivo. [Em estúdio] fazemos quase sempre sessões de 45 minutos a uma hora em que tocamos como se estivéssemos num concerto. E depois registamos o que acontece. Só que agora, como as condições não eram ideais, a voz foi toda gravada à parte e nalgumas sessões nem todos os músicos estavam presentes. Portanto, o que tens no álbum é 85% de sessões de improvisação e depois a voz e alguns instrumentos pontualmente editados”, descreve o baterista. Passado nem um segundo, a sua atenção desvia-se para os concertos e para a maneira como as faixas evoluem ao vivo. “Acho que nunca tocamos uma canção da mesma forma duas vezes. Cada tema que ouves num concerto é um objecto único, exclusivo para o público que está presente naquele dia.”

Talvez por estar habituado a encaixar os mesmos poemas em temas que se transformam de concerto para concerto, não é um problema que o poeta António Pedro Ribeiro e os instrumentistas não tenham gravado Sereias na mesma sala, nem que isso se note no disco. A relação entre os instrumentais (cuja autoria é creditada a toda a banda) e os textos de Sereias (assinados por A. Pedro Ribeiro) sempre teve uma dimensão paradoxal. Por um lado, parecem e podem existir independentemente uns dos outros; por outro, combinam bem e fazem mais sentido juntos. A energia das canções pede determinadas palavras, e o declamador sabe conjugá-las onde fazem falta, tornando de uma assentada os poemas e as músicas mais memoráveis. Isto acontece de uma forma quase instintiva. João Pires dá um exemplo: “Nos concertos, se a parte instrumental está mais intensa, o Pedro declama muitas vezes o ‘Primeiro Ministro’, que é um poema que exige uma certa intensidade.”

O “Primeiro Ministro” a que o baterista se refere foi um dos singles do registo de estreia. Começa assim: “Quero o primeiro-ministro/ para comer ao pequeno-almoço/ quero um trabalho/ para mandar para o caralho/ quero um défice/ para meter no cu”. É um dos vários textos políticos de O País A Arder. Paralelamente à música e à poesia, António Pedro Ribeiro tem um longo historial de militância política. Passou pelo PSR (um dos partidos que esteve na génese do Bloco de Esquerda), foi candidato autárquico pelo PCTP/MRPP e tentou concorrer à Presidência da República. Hoje diz-se anarquista. “São as minhas contradições. Quando estive no PSR estava lá convictamente. Quando estive no MRPP estive lá convictamente, embora tivesse as minhas dúvidas. Mas hoje considero-me anarquista. Não acredito nos partidos, nem no sistema parlamentar”, justifica. 

“Considero-me contra o Estado, contra a autoridade. E sobretudo a favor da liberdade, que é essencial e está a ser amordaçada muitas vezes pelo sistema, por este capitalismo de controlo e vigilância, por estas coisas que nos fazem a cabeça todos os dias. É importante dizer que a vida não é isto. Que é preciso amor, que é preciso poesia, que é preciso arte, que é preciso gozo também. Que a vida não se pode resumir à compra e venda e ao trabalho”, conclui. E considera Sereias uma continuação do trabalho político começado há anos? “Não. É óbvio que há alguma ligação, mas isto é um trabalho artístico.” Mesmo reconhecendo que “a música é uma boa forma de tomar posições políticas”, não parecem ser essas as suas principais inquietações. Pelo menos agora, pelo menos no novo disco.

Canções como “Dinheiro” ou “Coisa” retêm uma dimensão política, no entanto já não se comem primeiros-ministros ao pequeno-almoço. Também não há referências a um país a arder, nem a Otelo e às Forças Populares 25 de Abril. “Foi algo que aconteceu naturalmente”, segundo António Pedro Ribeiro. “Calhou serem estas as canções. Claro que também tentei introduzir novos temas, como o desespero, o tédio, a depressão, as fobias sociais que se vivem na sociedade contemporânea.” Problemas que foram amplificados pela pandemia e os eternos confinamentos de 2020 e 2021, todavia “a maior parte destas letras são anteriores a isso”, garante. “É mesmo um mal-estar existencial. A falta da mulher, a solidão”, remata. João Pires intercepta a palavra: “Já é uma condição permanente”.

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