A fadista Ana Moura passou os últimos anos a construir Casa Guilhermina, declaração de intenções, testemunho de coragem e vitalidade artística. Um disco de ruptura onde num momento estamos a ouvir um fado tradicional, a seguir um semba, de repente há uma batida de kizomba, dança-se um fandango e ouvem-se outras músicas portuguesas e do mundo lá ao fundo, em loop – por vezes, escuta-se tudo isto ao mesmo tempo.
Stephen Malkmus é um nome fulcral do indie rock americano, adorado por velhos e novos fãs sobretudo pelos discos que gravou com os Pavement na década de 90. Mas depois da separação do lendário grupo, e ao longo deste século, continuou a fazer o mesmo tipo de música com a sua própria banda, os Jicks. No ano passado, decidiu mudar de rumo e editar sozinho um álbum de synth-rock. E agora voltou a surpreender quem o ouve com as canções folk de Traditional Techniques, mais uma vez sem os Jicks. E que boa surpresa. O novo disco é maioritariamente acústico, e absorveu influências indianas e do médio oriente, do country americano e da folk psicadélica dos 60s, mas sem se afastar completamente das bases indie do cantor e compositor. Por altura da sua edição, falámos sobre o novo álbum e a reunião dos Pavement, que tocam em Junho no festival NOS Primavera Sound, no Porto. Se o novo coronavírus os deixar.
Desde que fizeste 50 anos pareces estar a trabalhar mais do que nunca. O Traditional Techniques é o terceiro álbum que lanças em três anos. A que se deve este aumento de produtividade?
Não sei dizer. É verdade que não costumo lançar os discos tão perto uns dos outros, mas aconteceu por acaso. Não foi nada planeado. Se bem que realmente estou com mais tempo livre agora que as minhas filhas estão mais velhas. Antes de terem feito dez anos era mais difícil arranjar tempo para mim.
És um pai muito presente?
Sim. Agora a mais velha tem 14 anos e a mais nova está com 12, e mesmo assim se não estou sentado no sofá, ou a fazer exercício, ainda estou a tratar a delas. A levá-las para aqui e para ali.
Fazes exercício?
Sim. Jogo ténis, faço yoga e passeio o cão.
Passear o cão não é fazer exercício.
Claro que é [risos]. Tens cães?
Não, sou alérgico. Mas vamos falar dos discos. O Sparkle Hard (2018) é um disco de indie rock, o Groove Denied é mais electrónico, e agora o Traditional Techniques é um disco de folk. As diferenças são óbvias, mas encontras algumas semelhanças?
São discos de canções, e conceptualmente coerentes. Além disso, houve canções que me acompanharam e tentei gravar ao longo destes anos. Por exemplo, tentei fazer um versão indie rock da “Cash Up” no disco com os Jicks, em 2018. Depois experimentei gravá-la numa onda mais electrónica, para o Groove Denied, e agora voltei a fazê-la só com guitarra e pouco mais. Desta vez, senti que estava finalmente pronta para ser editada.
Gravaste o Traditional Techniques com o Chris Funk, o Matt Sweeney e alguns músicos de sessão profissionais. Nunca tinhas trabalhado assim, pois não?
Nunca. Mas agora apeteceu-se experimentar ir para estúdio com as canções e alguns arranjos, e contratar gente para as terminar. E não é só por estes músicos de sessão serem óptimos, porque os Jicks também são muito bons. A diferença é que os Jicks normalmente já sabem o que quero fazer antes de começar a tocar. Às vezes isso é perfeito, todavia achei que seria interessante gravar com pessoas que encarassem o processo criativo como um emprego, ou para quem isto fosse só mais um trabalho. Quase como num disco de easy jazz, em que o líder chega com cinco ou seis acordes e eles tocam por cima e à volta disso.
Achas mesmo que isto foi só mais um trabalho para eles?
Claro que não. Gostava de imaginar que era isso que estava a acontecer, no entanto um músico nunca encara o que faz como um trabalho. Até porque é muito difícil viver da música, tens mesmo de gostar do que fazes.
De facto, há maneiras mais fáceis e seguras de ganhar a vida.
Exacto. É claro que há estrelas de rock que têm vidas incríveis. E mesmo eu não me posso queixar: consigo viver só da minha música, não preciso de arranjar um segundo trabalho. Tenho muita sorte. Mas a maior parte das pessoas não está na minha situação. Portanto, a malta só faz isto porque gosta mesmo da música.
A tua música nunca foi abertamente política, porém tenho-te visto a escrever muito sobre as eleições primárias do Partido Democrata no twitter.
Sim. Mas estou a tentar controlar as minhas expectativas.
Em relação ao quê?
À vitória do Bernie Sanders, obviamente. Eu e a minha família estamos envolvidos na campanha, a doar dinheiro e a fazer chamadas telefónicas para os eleitores. Acho que o Bernie é o melhor candidato por múltiplas razões. Se bem que as pessoas demoraram a perceber isso, talvez porque causa da sua idade.
E pela maneira como ele é atacado pelos principais meios de comunicação social.
Isso também. Mas não sei até que ponto os media ainda conseguem influenciar as pessoas. Basta ver que o Donald Trump ganhou. Não quero falar muito sobre ele, mas…
Depois do Trump qualquer pessoa pode ganhar.
Sim. E a vitória dele mostrou que os meios de comunicação e os canais de televisão não têm a influência que tinham dantes. Talvez junto dos mais velhos, mas a juventude não se deixa enganar. Ou melhor, sabemos quando nos estão a enganar. Não tinha esta noção das coisas há 20 anos, e a maior parte das pessoas à minha volta também. Acreditávamos cegamente nos meios de comunicação supostamente mais à esquerda.
Ou pelo menos acreditávamos na sua integridade.
Pois. Agora não. É interessante falares em integridade, porque uma das coisas boas do Bernie é precisamente a sua integridade. Um dos meus amigos cresceu ao lado dele no Vermont e lembro-me de, há quatro anos, me dizer que não havia nada que se pudesse apontar ao Bernie. Segundo o meu amigo, a pior coisa que se podia dizer era que ele era um bocado desarrumado e não cuidava bem da casa. Por exemplo, a cozinha era pouco limpa e às vezes havia um bagel cheio de bolor atrás do fogão ou coisa que valha.
E isso é humanizante. Não sei se não tenho um bagel cheio de bolor perdido em casa.
Também não sei se não tenho um algures. Lembro-me de pensar que, se isso era o pior que podiam dizer sobre ele, era mesmo na boa.
Pois. Por acaso, estou a pensar ir brevemente aos Estados Unidos para acompanhar as primárias. A não ser que o novo coronavírus me impeça.
Não me digas nada. Estou cheio de medo que isso afecte a reunião dos Pavement. Ninguém está a falar disso, mas acho provável que comecem a cancelar eventos públicos. Não quero ser entrar em histeria, mas estou atento ao que se está a passar.
Os Pavement só vão tocar em Portugal e Espanha, certo?
Sim. É tudo o que temos marcado por agora.
Como vais integrar esses dois concertos no meio da digressão de apresentação do novo disco?
São máquinas diferentes. Tenho um agente que trata só das minhas datas, a solo e com os Jicks, e outra pessoa a marcar os concertos de Pavement. Só tenha de aparecer no sítio combinado, à hora certa, e estar pronto para tocar. É fácil. Claro que tenho de aprender as canções e tocar e ser simpático, mas tocar com os Pavement é fácil. Apresentar o disco de folk vai ser uma experiência mais intensa.
A sério?
Sim. Porque temos uma banda nova e estamos a tentar fazer algo do zero. Vamos começar agora os ensaios.
Não achas que vai ser difícil desligar a ficha do Traditional Techniques, dar uns concertos com Pavement, e passados uns dias voltar às canções do novo álbum?
Espero bem que não. Estou a encarar isto quase como se eu fosse um músico de sessão que tem de tocar com várias pessoas. Porque é isso que faz a maioria dos músicos. A malta não pode recusar trabalho, tem de aceitar tudo.
Mas não há-de ser o teu caso. Deves dizer que não a muitos convites.
É claro que digo. Mas só porque tenho a sorte de poder fazer coisas novas e viver disso. E vou continuar assim enquanto conseguir e me deixarem. Até porque quando era mais novo pensava que quando tivesse 50 anos ia estar a fazer música de merda, e ainda não sinto que esteja.