O nome anda associado a uma estrela Michelin há já vários anos – o que é notável, considerando que Pedro Pena Bastos ainda só tem 31. À frente do Cura, o restaurante que abriu no hotel Ritz no Outono de 2020, o chef convenceu enfim os inspectores, depois de ter andado lá perto na Herdade do Esporão (este ano também distinguida) e de ter prometido fazer o mesmo com o Ceia (que entretanto fechou).
Martín Berasategui fala de si como alguém que só existe como parte de um todo. Em Lisboa, não se cansa de dar créditos ao chef Filipe Carvalho e à chef de pastelaria Maria João Gonçalves, que estão aos comandos da cozinha do Fifty Seconds, e garantem ao chef espanhol uma estrela Michelin também em Portugal. Mas também agradece a todos cujo trabalho parece invisível aos olhos de quem se senta nos seus restaurantes e sem os quais, diz, não seria o cozinheiro que é. Não se esquece nunca de onde vem, tão-pouco tem medo de quem está para chegar. Em Dezembro, recebeu o Prémio Michelin para Cozinheiro Mentor e emocionou-se. Sabe que é assim que o vêem, gosta desse papel, mas diz-se um eterno aprendiz.
O que mais o surpreendeu no Fifty Seconds?
Tudo, [Lisboa] é uma cidade maravilhosa, é uma equipa incrível. Como amigos são únicos, como profissionais são os maiores entre os maiores. [O restaurante] está numa cidade que é uma maravilha, uma cidade com gente simpática, sempre a sorrir, com cultura de esforço e trabalho, e com uma matéria-prima impressionante. Martín Berasategui não sou eu, somos nós todos. Nós, os jornalistas, os agricultores, os caçadores, os apanhadores de cogumelos, os criadores de gado, os pescadores... É uma cidade que tem tudo. Aqui temos uma equipa pilotada pelo Filipe e pela Maria, que dão a vida para fazer um projecto impressionante. Começámos muito, muito bem, até que chegou a pandemia. Ninguém estava preparado para isto, mas trabalhámos duro. Costumo dizer como piada que há cozinheiros que adormecem na cozinha e nós quando dormimos trabalhamos, é a diferença.
Nunca param?
Não.
E o que espera para o futuro deste restaurante?
O presente e o futuro da cozinha do ‘50 Segundos’, da cozinha de Lisboa e da cozinha portuguesa, está mais do que assegurado. Faz 48 anos que comecei na cozinha, quando não havia escolas nem universidades, era a escola da rua e da casa popular de comidas onde nasci. Agora em Portugal, em Espanha, em França, em Itália, há excelência escolar e profissional. E Portugal está a conseguir um turismo gastronómico que ninguém sonhava, igual a Espanha. Portugal está a conseguir que pessoas de todo o mundo viajem para ver a obra da cozinha portuguesa, tanto no caso do Fifty Seconds by Martin Berasategui, como no caso de outros grandes cozinheiros portugueses que ganharam o carinho do mundo trabalhando duro. Como eu costumo dizer, é um país que contagia, que emociona todos os que chegam e é um país inconformista por natureza. É um país que se faz em equipa. Somos uma família, eu sozinho não sou nada. Somos nós todos que fazemos a unidade para que se faça um grande trabalho. A minha vida está cheia de projectos, é o que mantém viva a atitude, esse garrote, essa força, essa energia. Somos da cultura de somar e de multiplicar, nunca de subtrair. Tenho o modo dos meus pais, desde criança que me ensinaram a tentar ser o melhor cozinheiro que poderia ser. São lições que valem para todas as gerações. Melhor pessoa és, melhor equipa tens e melhor cozinheiro és. Na cozinha não pode faltar a generosidade e o esforço, somos uma profissão que transporta felicidade.
E que se faz de partilha?
Sim, de partilha e de compartilha. Gosto de fazer entender que temos uma profissão que [existe] para que as pessoas passem um bom bocado. O mundo parece ter cada vez mais especialistas, mas não se pode perder nunca essa forma de desfrutar da partilha. Eu não entendo a comida sozinha. A comida é festa, é passar bem, é para relaxar e desfrutar. Eu sou um privilegiado porque em qualquer sítio do mundo aonde vou, sinto-me super-querido. É preciso dar graças pela vida porque nunca sonhei que ia estar em Lisboa, nem louco. Quando era criança e queria ser aprendiz de cozinha – que continuo a ser, um eterno aprendiz –, tinha dúvidas sobre se seria cozinheiro, se viria a ganhar um salário. Mas dei-me conta que com trabalho tudo se consegue e que toda a gente que trabalha duro tem prémios à sua espera. Sempre. É isto que eu ensino aos jovens. Não conheço ninguém que tenha trabalhado duro e que não tenha tido prémios à espera. O que acontece é que todos queremos que nos deem os prémios antes, é lógico, é humano. É preciso paciência, mas o que não se pode é deixar de trabalhar.
O que aprendeu com Lisboa?
Tudo. É uma cidade humana, trabalhadora, sorridente. Toda a gente tem vontade de fazer mais e melhor. Ser cozinheiro em Lisboa é importante, ser cozinheiro em San Sebastián é importante. Eu tenho grandes amigos, com quem trabalhei na cozinha, grandíssimos cozinheiros, e que estão em países onde cozinhar não é nada. Isso dá-me pena. Lisboa é a minha casa, sinto-me como peixe na água. E, para um cozinheiro, Lisboa é um privilégio porque todos os produtos que nos chegam são bons, [temos] os melhores clientes, uma cidade com garrote, com garra, com força, com energia. Eu não tenho nem medo, nem preguiça, nem vergonha de dizer que tive uma sorte incrível em vir para Lisboa, nunca poderia pensar que seria eu o escolhido para vir para aqui. Quando estou aqui de manhã sozinho, olho para um lado e para outro e belisco-me.
Mas como é que se diferencia o Martín Berasategui do Fifty Seconds do Martín Berasategui do Lasarte, por exemplo?
O Martín em Lasarte, em Tóquio, em Nova Iorque, na Nova Zelândia ou em Lisboa, é o mesmo, é o fio condutor. Só que o Martín em Lasarte tem um traje gastronómico, em Lisboa, tem outro. Dependo sempre de onde estou. Levo 48 anos de trabalho, sou tremendamente generoso e ponho-me no lugar do outro para que encontre o Martín que eu gostaria de encontrar no seu lugar.
Todos diferentes, todos iguais?
Todos diferentes e com o fio condutor do Martín. Quem pilota o projecto gastronómico do Martín em Lisboa, um irmão meu de confiança, é o Filipe Carvalho, e noutros pontos do mundo são outras pessoas. O Martín Berasategui não sou eu, somos todos. O Filipe, a Maria e todos, até aquele que chegou agora. Quando estou com quem trabalha há mais anos comigo, ponho-me nos seus lugares. E quando chega gente nova, ponho-me no lugar deles também. Gosto que me vejam como o Martín que eu gostaria de ver nos primeiros dias na cozinha. É simples. Eu ponho-me no lugar do pescador que traz o peixe, não podemos pensar que estamos acima dele. Nem acima, nem abaixo, estamos ao mesmo nível. Todos vamos morrer, embora haja gente que ache que não.
Mas como é o dia-a-dia de alguém que tem tantos restaurantes? É difícil?
Não, não. Depende de como sejas. Há que dar tudo a esta família Martín Berasategui que tens por todo o mundo e pôr a alma na tecnologia para que possas falar com vários de uma só vez, do irmão mais pequeno ao mais velho. Eu estou na casa-mãe [no restaurante homónimo com três estrelas Michelin, em Lasarte-Oria, nos arredores de San Sebastián, de onde é natural] e daí chego a Lisboa, a Barcelona, a Bilbao, à Grécia... E trabalhas em equipa porque pões a alma em todo o lado e tudo vai à casa-mãe, que é o maior banco de provas criativo que temos. Aí, tenho 350 metros de cozinha para dar de comer a 40/45 comensais e, em baixo, tenho 200 metros no banco de provas criativo. É daí que se dirigem todos os bancos de provas criativos, toda a gente acede ao que se passa com Martín.
Ao mesmo tempo?
Sim. Isto há uns anos não se poderia fazer. Lembro-me, quando era miúdo, os assessores gastronómicos tinham que estar o dia todo no avião porque não havia esta tecnologia. Não faz sentido passar o tempo no avião quando tens muitos Martín Berasategui. E para que tenha muitos Martín Berasategui tens de fazer o que gostavas que te tivessem feito a ti. A vida é muito mais fácil se lhe pões um sentido comum. Não gosto de fazer nada que não gostasse que me tivessem feito. Nunca. É o A do Abecedário. E o A do Abecedário é o respeito. Eu gosto que o Filipe esteja tão contente como eu, que desfrute como eu. A Maria o mesmo, o sommelier também, as pessoas da limpeza, os empregados. Se não é assim, há algo a fazer.
Falando do Filipe e da Maria, o que gosta mais no trabalho deles?
Absolutamente tudo. Quando comecei como aprendiz, não havia escolas. Tive a sorte de ter os meus pais e a minha tia na casa popular de comidas. Trabalhava seis dias da semana e no dia de descanso semanal, quando tinha 17 anos, levantava- -me às 04.30 da manhã para às cinco estar a trabalhar como pasteleiro com Jean-Paul Heynard, ao lado da catedral de Baiona. No dia de descanso semanal, ia lá aprender e voltava com a energia e a mochila carregadas de conhecimento. Abriu-me as portas de André Mandion, um pasteleiro da selecção francesa em 1982, quando ganhou o mundial de pastelaria. Eles abriram-me as portas para ser o primeiro espanhol, anos mais tarde, da Escola de Pastelaria Moderna de Yssingeaux e logo me abriram as portas de cozinheiros como Alain Ducasse ou Michel Bras. Na altura, os cozinheiros franceses não vinham a Espanha, mas como falo perfeitamente francês, ajudava-os com a minha equipa, com recursos humanos e técnicos para poderem fazer em Espanha um jantar. E é assim que começa a revolução da cozinha espanhola, e agora dou-me conta que temos conseguido muito mais do que um sonho, porque os cozinheiros jovens são igualmente trabalhadores. O Filipe, a Maria e toda a equipa que tenho em Lisboa são tão trabalhadores como eu era – porque mais não se pode ser –, mas são muito mais rápidos do que eu era, muito mais tecnológicos do que eu. Viajam muito mais do que nós viajávamos. Têm uma rapidez e uma frescura que nós não tínhamos. O presente e o futuro estão mais do que assegurados na cozinha portuguesa, na cozinha espanhola, na cozinha japonesa, em todo o mundo. O mundo mudou e a cozinha também e temos que ser humildes como quando a cozinha não era nada. É muito bonito desfrutar, se és boa pessoa, agradeces o que foi feito àqueles que vieram antes de ti e dás tudo aos que são muito melhores do que tu eras na idade deles. Há que dar-lhes tudo para que te passem pela esquerda. Senão o que fazes neste mundo? Eu sou um grão de areia numa praia. O que é uma pessoa? Uma gota?
Só se consegue chegar ao topo em equipa?
Claro, e uma equipa é uma família. Eu tenho uma relação muito próxima com os meus irmãos e irmãs, e a mesma relação tenho com os meus irmãos cozinheiros e irmãs cozinheiras, com os meus assistentes, com as pessoas da limpeza, com os pastores. Quando vejo um barco de pesca, emociono-me, a raça que têm. É muito duro. Quando vês tudo o que se trabalhou na vida para que possas continuar como cozinheiro é incrível.
E vê-se como um mentor, como foi agora reconhecido na gala Michelin?
Eu não sabia de nada e por isso emocionei-me. Estava sentado, a pensar no que poderia acontecer nessa noite, muito nervoso porque a Michelin mudou-me a vida e permitiu-me viver uma viagem como cozinheiro e pessoa que não sonhava. Quando me dão o prémio para o melhor mentor da história do Guia Michelin de Espanha e Portugal, alucino. Eu sou daqueles que quando ganha uma estrela Michelin é como se tocasse com a ponta dos dedos no céu da cozinha. Mas desfruto da mesma forma quando sobem ao palco rapazes e raparigas para receber o prémio que todo o cozinheiro que trabalha no duro espera. Quando me dão a estrela de Cozinheiro Mentor e uns minutos depois um cozinheiro que ganhou uma estrela Michelin na Estremadura [Álex Hernández Talaván, do Versátil] com um restaurante muito moderno, muito modesto, e ele disse que não recebia sem que eu subisse ao palco, não te pode acontecer nada mais bonito.
O que o surpreende na cozinha?
Surpreende-me tudo porque tenho a ilusão de um aprendiz, tendo quase 62 anos.
E o que lhe falta fazer?
Se eu pedir uma décima parte, sou injusto.
Mas vê-se na cozinha ainda por muitos anos?
Sim, a cozinha é a minha vida. Não entendo o Martín sem cozinha, não entendo.
Não se vê a parar?
Não, impossível. À excepção da saúde, mas se tenho saúde, onde mais poderia estar?
Qual é o maior desafio hoje?
Algo que não sabia que estava para vir, a pandemia. É o único, tudo o resto não é um problema.
O que se sente depois disso, então?
As pessoas estão com muita fome de vir aos restaurantes. As pessoas querem voltar a desfrutar, mas ninguém estava preparado para isto. O que está claro, uma vez mais, é que o humano é frágil. Somos frágeis. Temos de falar menos e desfrutar mais. Quando estás bem, tens de passar bem, se não vai chegar o dia em que te vais arrepender.
Quando se chega a este nível, como é que se supera a excelência?
Para mim, a excelência é tudo o posso dar para te proporcionar a maior emoção possível. Como superar essa excelência? Amanhã é preciso fazer melhor do que hoje, e depois de amanhã melhor. É uma atitude de vida.
Mas há uma pressão extra? Com tantas estrelas...
Não, é uma filosofia de vida.
É natural para si, é isso?
Para mim, é um privilégio ter stress, stress positivo. Sinto-me um privilegiado por estar neste sítio, temos que passar bem, fazer o melhor que podemos e dentro de uns anos serão outros, mas agora é preciso desfrutar. É como acontece com o Nadal ou o Sá Pinto no futebol. Quando jogas, és um privilegiado. O Sá Pinto foi jogador da Real Sociedad, é um grande amigo meu. Pressão? Não, tens de desfrutar porque és um privilegiado, porque tens talento, atitude, físico. A cozinha é exactamente igual. Se estou com 12 estrelas Michelin, tenho de desfrutar, tenho de ensinar tudo o que sei para que, quando for mais velho, veja que os jovens são melhores do que eu. Isto é um privilégio, isto é a bendita pressão. Pressão positiva, sempre para a frente, nunca deixar as pessoas serem esquinosas. Sabes o que quer dizer esquinoso?
Não.
Es que no, es que no. Eu não quero esquinosos. A mim não me acrescentam na vida. Tem que ser “es que si”. Há que ser feliz e fazer feliz os outros.
É o tal garrote que tanto o define.
O garrote é atitude, é positivismo, é somar, é multiplicar e nunca subtrair, nunca queixar-se. O que mais se queixa é o que menos faz e os que mais fazem nunca se queixam.