Ainda não foi este ano que o Fifty Seconds de Martín Berasategui recebeu a segunda estrela Michelin, mas no topo da Torre Vasco da Gama sabe-se que é uma questão de tempo. E isso não se deve apenas ao trabalho do chef espanhol, o mais estrelado na Península Ibérica (já são 12), mas também a Filipe Carvalho, o chef executivo do restaurante que não tem medo do aparente lugar à sombra, por saber perfeitamente que quando um brilha, todos brilham. Com Filipe Carvalho, não há falsas modéstias, nem meias medidas.
O nome anda associado a uma estrela Michelin há já vários anos – o que é notável, considerando que Pedro Pena Bastos ainda só tem 31. À frente do Cura, o restaurante que abriu no hotel Ritz no Outono de 2020, o chef convenceu enfim os inspectores, depois de ter andado lá perto na Herdade do Esporão (este ano também distinguida) e de ter prometido fazer o mesmo com o Ceia (que entretanto fechou). De Reguengos ao Ritz, Pena Bastos desenvolveu uma ideia de cozinha com sentido telúrico, atenta à sazonalidade e à origem do produto, apostada em complexificar cada criação até que tudo fique reduzido à sua simplicidade essencial e o fine dining possa, afinal, aproximar-se de comida de conforto. Complicado? Não, é simples. Ele explica.
Então, parabéns.
Muito obrigado.
Que tal está a ser este momento?
Acho que ainda não realizei bem, confesso. Tem sido uma azáfama. Já não bastam os problemas constantes por causa da pandemia, ajustes de staff, mais as coisas normais do restaurante, agora esta estrela...
Vem atrapalhar?!
Não! [ri-se] Estava só a desabafar sobre a azáfama destes dias. A estrela é incrível! Vem consolidar o nosso trabalho, o trabalho da equipa. É consequência do trabalho e da dedicação ao projecto todos os dias. Lembro-me de no início se falar muito de que íamos abrir para ganhar uma estrela Michelin...
E não era esse o objectivo?
Continuo a pensar da mesma maneira: ninguém abriu restaurante nenhum para ganhar uma estrela. Abrimos sim para fazer comida de alto nível em que, naturalmente, os standards são coincidentes com os do Guia Michelin, como são com outros guias. Agora, o Michelin tem um impacto muito grande na indústria, principalmente em Portugal. Enquanto noutros países ganhar uma estrela é entrar para dentro de um céu estrelado, aqui...
O firmamento ainda é pequeno.
Sim, tem outro impacto. Orgulho e humildade de parte, é maravilhoso, adoro, claro que ambicionava conquistar uma estrela. Mas não consigo ver isto como uma meta. A meta vai ser sempre algo mais além, colocar o restaurante nas bocas do mundo, termos clientes satisfeitos, casa cheia todos os dias, ajudar a consolidar a nova gastronomia portuguesa, que eu acho que ainda é difícil de exprimir o que é ...
Já vamos a isso. Não sendo uma meta, a estrela era um checkpoint obrigatório.
Exactamente. Não é uma meta, no sentido de objectivo final.
Um meta volante, tipo ciclista.
Isso!
Já está a trabalhar para a segunda.
Lá está! Acho que devo evitar essa mentalidade. Ainda agora tivemos a primeira, vamos consolidar bem isto. Mas queremos continuar a crescer, a levar o restaurante ao limite do que é viável, a elevar a oferta que conseguimos dar ao cliente.
Ou seja, trabalhar para a segunda.
Se já foi feito por outros restaurantes, nós também conseguimos fazer. Mas tem de haver um sentido. O que eu pretendo é deixar um legado, uma marca...
Essa marca já está: o Ritz tem idade para ser seu pai e nunca tinha tido uma estrela.
É verdade, 60 anos! [longo sorriso] Agora é mantê-la. E evoluir. Sim, pronto, hão-de cair mais estrelas. Mas o que eu queria dizer, sem falsas modéstias, era isto: um cientista não luta por um prémio de mérito, eles surgem porque ele descobriu algo inovador. Eu vejo a restauração assim. Desbravar mais caminhos, tirar o cliente da zona de conforto, mas sem nunca lhe tirar o conforto físico de sentir que está bem sentado a fazer uma óptima refeição. O prazer é uma linha ténue. Acho que se arriscarmos demasiado, entramos numa zona inóspita...
Trabalhar para a estrela tem esse risco, de um chef começar a cozinhar para si ou para alguém que não o cliente?
De cozinhar para uma expectativa, sim. Acho que nunca vou abdicar de cozinhar para o cliente, para que tenha uma grande experiência e queira voltar.
É esse o objectivo final?
Sim. Quantas pessoas foram ao Noma e quiseram voltar? Não conheço muitas. Porque são experiências marcantes, muito fortes, encaradas como once in a lifetime. E eu acho que ainda é possível oferecer gastronomia de alto nível, equiparável a duas ou três estrelas, e provocar vontade de voltar. E se não é, vai ter de ser, vamos ter de fazer por isso.
Já está, portanto, a trabalhar para a terceira.
[Ri-se] O que importa é que temos de estar sempre a evoluir. Não é só na parte gastronómica, mas na percepção do cliente quando se senta na nossa mesa.
Isso é o quê? Aproximar o fine dining da comida de conforto?
Exactamente! De forma a que a pessoa quase não sinta que está num fine dining, que seja conduzida por uma experiência em que os sabores, as texturas, a estética, tudo isso tem de ser confortável. Pode haver pratos mais ou menos intensos, mas a comida tem de ser toda muito boa. E às vezes o excesso de experimentalismo deixa o cliente numa área inóspita. As coisas às tantas afastam- -se daquilo que é real. Não temos de fazer as coisas para agradar ao gosto do cliente, claro, temos de o desafiar, sim, mas temos também de ter noção dos limites. É um jogo. Desafiar o cliente, sem nunca desperdiçar a oportunidade de lhe dar uma grande experiência. Não sei se me faço entender...
Creio que sim. No início deste projecto falava na vontade de reinventar um clássico...
Sim, de certa maneira.
Clássico é sinónimo de maior simplicidade?
[Pausa] Não é bem... há uma frase do Leonard Cohen de que eu gosto: simplicity beyond complexity...
A simplicidade não é simples.
Nada! A simplicidade dá muito trabalho porque não dá para tapar buracos. É o que é. Se não estiver perfeito, não dá para usar, não dá para disfarçar. Daí ser tão difícil simplificar. Há uma enorme tendência dos cozinheiros para colocar demasiados itens no prato, demasiadas conjugações, quando na verdade dois ou três ingredientes muito bem trabalhados são o suficiente para fazer aquele momento brilhar e transmitir a mensagem. Mas é difícil. Acho que todos os chefs tentam atingir isso. Sinto que no Cura estamos nesse processo, a simplificar uma série de coisas.
A depurar.
A depurar, precisamente. Por isso digo que não estamos a trabalhar por uma segunda estrela, estamos a lutar por um standard, por mantermos o que conseguimos melhorar no dia anterior antes de voltar a inovar hoje, antes de sobrecarregar com mais ideias, mais criatividade. Sobretudo quando se persegue esta ideia de restaurante que defendo, esta vontade de fazer com que os clientes voltem. Porque isto é um restaurante, não é um museu. E se insistirmos neste caminho acho que temos hipótese de ganhar uma segunda estrela, claro que sim. Mas um dia de cada vez.
Está então a dizer-me que não está a trabalhar para isso, mas a estrela acabará por vir cá parar.
[Ri-se] Eu acho que sim! Deixa ver, o Guia está a mudar...
Que saiba, quantas vezes foram visitados por inspectores da Michelin?
Três, que eu saiba.
Percebe-se sempre?
Nem sempre.
O que é que muda quando se percebe?
Não muda nada...
Essa é a resposta diplomática.
Não, a sério. Há um reforçar de atenção naquele prato, naquele momento, naquela mesa, claro, mas os processos são exactamente iguais. Não dá para disfarçar, dar tudo naquela mesa e nas outras não, até porque os inspectores hoje estão atentos a tudo isso, ao feedback das pessoas, ao ambiente geral, à sincronização com a equipa.
Essa informação é partilhada entre toda a equipa? "Atenção, inspector na mesa 5”.
[Ri-se] Sim, claro. É importante as pessoas habituarem-se a isso sem drama. Ok, temos ali um cliente que está ainda mais atento, que exige um reforço de atenção, porque há micro-afinações que um cliente normal pode não dar conta. É instintivo, fazemos double check com tudo o que é serviço de cozinha. Na sala não há grande coisa a fazer, estamos a servir toda a gente, não há como fazer distinção. Nesse sentido, se temos uma estrela é porque todos os clientes sentiram que a merecíamos, e não só um inspector.
Voltemos então atrás: o que é isso da nova cozinha portuguesa?
Não sei, mas estou à procura [ri-se]. Penso muito nisso: como é que nós conseguimos expressar melhor o conceito português sem voltarmos a fazer o que já foi feito. Sem voltarmos a fazer umas iscas de bacalhau reinventadas...
Mas procura uma base telúrica na cozinha, alguma coisa que diga sem margem para dúvidas que ela é daqui?
Sim. Daí os quatros pilares com que eu estou sempre a chatear a equipa. Primeiro, perceber onde é que estamos, qual é o enquadramento e as coordenadas...
Portugal, Lisboa, primeiro hotel de luxo da cidade...
Isso mesmo. Isso é muito importante. O cliente que vem ao Cura vem ao Ritz. Uma pessoa olha para cima e tem 40 metros de imponência de mármore. Se não transpuséssemos isso para a mesa, não estávamos aqui a fazer nada. Depois, o segundo pilar, a sazonalidade e a origem do produto...
Isso não está um bocadinho subvertido? Já o ouvi dizer que hoje em dia fazem-se beterrabas o ano inteiro.
É. Mas nós sabemos qual é a época natural dos produtos e qual a sua origem. Em Portugal temos rábanos no Verão e beterrabas no Inverno. Há produtos muito sensíveis à sazonalidade e esses sim, fazemos questão de os trabalhar numa época específica. Há produtos que simbolizam uma estação, uma época, às vezes uma semana. Não há marmelos o ano inteiro, há entre Outubro e Fevereiro, e acabou. Embora, lá está, hoje também temos morangos no Inverno e aproveitamos isso. A não-sazonalidade de alguns produtos também nos ajuda a manter alguma consistência.
O terceiro pilar...
O terceiro é a conjugação dos dois anteriores. Agarrar em coisas que uma pessoa, à partida, não associa a um lugar, e conseguir transpô-lo para lá, com sentido. Como é que conseguimos, num edifício como estes, com a loiça que temos, servir um pato selvagem com uma maçã assada e uma série de outras coisas que se calhar ninguém está à espera de comer aqui. No fundo, acaba por ser a parte mais difícil...
A parte artística.
Sim. A sazonalidade, a terra dá-nos, só temos de estar atentos, acompanhar...
É comprar o Borda d’Água.
[Ri-se] Exactamente. Acompanhar e respeitar. O lugar onde estamos também é o que é, temos de o estudar, conhecer e respeitar. A conjugação destes dois é que é o mais difícil. É quase como ter uma tela em branco. Depois o último pilar é a parte estética pura. É o final, a parte mais volátil, que nós ajustamos todos os dias.
Um chef também é um designer?
Sim... há chefs que não são designers e simplesmente prezam uma gastronomia mais pura e dura, em que a estética do produto fala por si. Só que eu sempre fui um miúdo das Artes, de querer ter as coisas muito organizadas e a comida organizada no prato também me faz sentido. Mas no essencial é procurar combinações ousadas mas simples e que exprimam o sabor de cada elemento da forma mais pura. Um molho feito com miso de lentilhas e cevada é super-simples, mas não é simples de fazer.
Complexo de fazer mas simples de sentir?
É isso. Ok: temos um peixe, um óleo, uns cogumelos salteados com uns percebes e está feito. São quatro ingredientes apenas, só que a potência, as camadas de sabor, a quantidade de informação que a nossa cabeça recebe no momento em que colocamos uma colher daquilo na boca é surreal. Mas é tão surreal como um molho de salmonete feito só com uns fígados e manteiga, porque aí o próprio produto também tem potência ... é tentar simplificar a forma de apresentar, de cozinhar, mas torná-la complexa no que toca ao alcance da experiência.
Grande parte do trabalho do chef está a montante, com os produtores?
Claro. É muito difícil elevar a personalidade de cada produto na cozinha e é isso que nós trabalhamos. Como é que aqueles cantarelos conseguem demonstrar melhor o seu valor? Não é só saltear, como se fazia, à francesa, pôr manteiga, sal e está feito. Eles se calhar têm de estar uns dias para perderem a humidade, ganhar aroma. A parte criativa começa aí.
Há muito trabalho antes e muito trabalho depois da cozinha...
São as extra miles que temos de fazer, que é não nos deixarmos cair na tentação do conforto do ritmo diário, ter atenção aos detalhes.
Lembro-me de o ouvir dizer que até a playlist foi pensada ao detalhe.
Sim. Estou há um mês sem conseguir controlá-la e já estou a bater mal por estarmos sempre a ouvir as mesmas músicas. Mas faz sentido: uma mesa que entra às 21.30 não é igual a uma mesa que entra às 19.00...
Também há sazonalidade na playlist?!
[Ri-se] Acompanha o resto. A forma como trabalhamos também é muito uma prisão, porque temos de estar em cima todos os dias...
É muito obsessivo?
Não...
Metódico?
Sim. Tenho três agendas.
São quantas horas por dia?
Dez de trabalho no hotel, directo. Não são mais.
E isso sem trabalhar almoços.
Sim, só funciona ao jantar.
O ecossistema de um hotel é bom para uma estrela Michelin?
Isso é uma questão tricky...
Vou reformular: quais são os prós e os contras de estar dentro de um hotel?
Eu diria que se temos contras é porque não estamos a aproveitar os prós como deve de ser. A exposição é sempre diferente do que num stand-alone restaurant. Mas os prós são imensos, de apoio da operação, de conseguirmos ter um serviço 24 horas de atendimento de reservas – quem tem? Há vantagens em termos de captação interna de clientes; no caso do Ritz a vantagem também de associação ao nome. Não podemos é deixar-nos cair nesse conforto. Mas acredito que vamos fazer história em Portugal. O Ritz já fez, vamos fazer outra vez.
Está, definitivamente, a pensar em mais estrelas.
[Ri-se]
Já sei: os objectivos é que calham coincidir com os standards da Michelin. Sim. Noutros países se calhar não coincidem.
Como assim?
Se calhar, noutros países, um Taberna ó Balcão, um Prado ou um Euskalduna já teriam estrela Michelin.
Há um enviesamento na avaliação do Guia Michelin?
É uma questão cultural do Guia Michelin, na visão que tem de Portugal. Devíamos ter muito mais mérito reconhecido pelos restaurantes que temos. Porque são consistentes, têm uma óptima entrega, muitos deles são os melhores no seu conceito e valem a paragem.
Fala em nova gastronomia portuguesa, portugalidade na cozinha... começo a imaginá-lo a cozinhar com a camisola da selecção nacional vestida.
[Ri-se] Tem de haver um bocadinho disso. Quem nos colocou nesta posição foram todos os restaurantes que vieram antes e que fizeram algo pelo país, que trouxeram inspectores para cá, atenção, público, turismo. Quem fez esse trabalho antes inspira quem o faz agora. Somos resultado de uma evolução da gastronomia do país. E sim, claro que para mim é preciso vestir a camisola.
Segundo julgo saber, a maioria dos produtores a que recorrem são portugueses, outra parte espanhóis...
Sim. É uma guideline que temos. Ainda assim trabalhamos com alguns produtos ibéricos e noutras vezes temos de recorrer a produto de outras proveniências, acontece a qualquer restaurante. Mas a portugalidade da cozinha, para mim, começa aí, no produto. Há pratos em que não vemos uma portugalidade, mas ela está lá, no produto, no produtor, na génese. O todo é que tem de dar o conceito. Senão os talheres tinham de ser portugueses... A origem e sazonalidade do produto são princípios orientadores. No fim do dia, o que quero mesmo é fazer grande comida, proporcionar uma experiência única ao cliente.
E fazer com que volte.
Isso.