Chef, Filipe Carvalho, Fifty Seconds
©Mariana Valle LimaFilipe Carvalho
©Mariana Valle Lima

“Na alta-cozinha vives para isto, trabalhas para isto e descansas para isto”

É o braço direito (e o corpo presente) do espanhol Martín Berasategui em Lisboa. Um peso que não acusa, por saber perfeitamente o que está a fazer. Subimos ao Fifty Seconds para falar com o chef Filipe Carvalho.

Cláudia Lima Carvalho
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Ainda não foi este ano que o Fifty Seconds de Martín Berasategui recebeu a segunda estrela Michelin, mas no topo da Torre Vasco da Gama sabe-se que é uma questão de tempo. E isso não se deve apenas ao trabalho do chef espanhol, o mais estrelado na Península Ibérica (já são 12), mas também a Filipe Carvalho, o chef executivo do restaurante que não tem medo do aparente lugar à sombra, por saber perfeitamente que quando um brilha, todos brilham. Com Filipe Carvalho, não há falsas modéstias, nem meias medidas. 

O Fifty Seconds abriu com uma grande ambição, uma estrela chega?
Desde que abrimos que a nossa ambição são três estrelas, com toda a humildade e honestidade. Temos um objectivo muito claro, sabendo que é necessário muito tempo e trabalho para isso. Conseguimos, no primeiro ano, ganhar a primeira estrela, o objectivo logo a seguir foi trabalhar para a segunda. Nós vamos continuar a dar o nosso melhor e a esforçarmo-nos ao máximo. No final, se ganharmos vamos ficar muito felizes, se não ganharmos ficamos um bocadinho tristes porque não foi recompensado o trabalho, mas isso não nos tira a motivação de fazer mais e melhor. Ter o restaurante cheio e bom feedback dos clientes é o maior elogio que podemos ter. Ficamos só à espera da confirmação do Guia.

Mas ter a estrela tem um impacto real no restaurante, ou não?
Claro. Daí ser tão importante o investimento que fazemos e continuamos a fazer no restaurante, focados no objectivo X. Sabemos que uma estrela traz um tipo de clientes e duas estrelas traz outro tipo de clientes, que nos permite evoluir enquanto operação e enquanto projecto. O cliente duas estrelas é um cliente que tem mais poder financeiro, com outra visão.

O que é mais difícil, ganhar ou manter a estrela?
As duas coisas são difíceis. Para ganhar é preciso muito trabalho. Parece fácil porque ganhámos no primeiro ano, mas há restaurantes que estão oito/dez anos para ganhar uma estrela. Às vezes o nosso foco é querermos trabalhar para a segunda e esquecemo-nos que manter é muito importante. Significa que mantivemos a qualidade que eles procuraram no ano em que nos deram a primeira.

Como é que viu a gala deste ano?
Houve um ou outro sítio que me surpreendeu, inclusive o Esporão. Estava à espera de uma estrela verde, fico muito feliz que tenham ganho uma estrela Michelin. Acho que o Guia abre um bocadinho as portas a outras zonas do país que se calhar estavam ainda perdidas e sem essa distinção. É muito importante para o país. Não podemos crescer se centrarmos tudo em Lisboa, Porto e Algarve.

Na edição deste ano, o chef Martín Berasategui recebeu a estrela de Chef Mentor. Qual é a sua importância?
É exatamente isso que o prémio diz, um mentor. É uma pessoa que nos transmite ideias, que nos ensina, que nos ajuda, com quem trabalhamos diariamente e que nos dá aqueles inputs e diretrizes para seguirmos um caminho dentro do que é este mundo Michelin que ele tão bem conhece. É um professor, com quem aprendemos muito e temos a sorte de poder trabalhar.

Filipe Carvalho, Fifty Seconds
Mariana Valle Lima

Mas como é trabalhar aqui? A pressão é maior por representar um restaurante que não tem o nome do Filipe, mas sim do Martín?
Não, porque olho para o restaurante como se fosse meu. Não sinto que me exigem nem mais, nem menos do que se não tivesse o nome Martín. A única coisa [que acontece] é que desde o primeiro dia que as pessoas vêm ao Fifty Seconds com a expectativa das três estrelas Michelin que [o chef] tem em San Sebastián ou em Barcelona. Sentimos a pressão de estar ao nível desses dois restaurantes com que as pessoas nos identificam. É uma pressão saudável que nos obriga a ser cada vez melhores.

E como se distingue o que é trabalho do Berasategui e o que é o trabalho do Filipe Carvalho?
Para mim, às vezes, o grande elogio até é quando as pessoas não distinguem. Quando as pessoas pensam que tudo o que está aqui é feito pelo Martín é um elogio porque nos põe num patamar muito alto. Há dois pratos de assinatura, o mil folhas de foie gras e a salada de verduras; a partir daí, todos os outros pratos são feitos e desenvolvidos por nós. São pratos de que o Martín tem conhecimento, mas que têm um perfil Filipe Carvalho e equipa.

Quem o vai acompanhando sabe que tem uma entrega total ao restaurante. Isso é compreendido por todos à sua volta?
Acho que sim. Neste momento estamos a fazer cerca de 14 horas, o que é um bocadinho mais equilibrado do que o que fazíamos numa fase inicial do projecto, mas não peço nada à minha equipa que não exija a mim próprio. Quando eles entram eu já cá estou, quando eles saem eu continuo cá.

Já o ouvi também a fazer a comparação com Cristiano Ronaldo...
O que quis dizer é que, tal como há vários tipos de jogadores, há vários tipos de restauração e vários tipos de cozinheiros e chefs de cozinha. Há pessoas que querem simplesmente ganhar um salário e ter um trabalho. Há jogadores que querem jogar a outro nível, que querem ser os melhores. E quando queres ser o melhor, tens de viver com esse objectivo. Não basta só dizer que queres ser o melhor, tens de trabalhar, tens de estudar, tens que recuperar fisicamente. Só podes viver para aquilo.

Filipe Carvalho, Fifty Seconds
Mariana Valle Lima

Mas como é que se faz o equilíbrio entre vida pessoal e profissional?
É sempre um bocadinho desequilibrado.

Qual é o maior elogio que lhe podem fazer?
Voltar ao restaurante.

E o que é que não lhe podem dizer?
Nada. Tenho capacidade para ouvir tudo. Acho que é importante, desde que seja de uma forma construtiva e não destrutiva.

Quando começou na cozinha, era aqui que se imaginava?
Nunca me imaginei aqui. Os meus avós tinham um restaurante de comida tradicional portuguesa – oito euros, travessa de inox, tudo saía com arroz e batata – e eu sempre me vi a trabalhar numa cozinha dentro do que eu conhecia na altura.

Então como é que isto aconteceu?
Foi a vida. As portas foram-se abrindo. Havia oportunidades que ia agarrando. O caminho foi sendo feito até que chegou um dia em que apareceu este projecto e ou agarrava ou não. Quando agarrei, pensei: agora não posso fazer nada, tenho de me desenrascar. E pronto, hoje estou aqui.

Os avós desse restaurante percebem o que faz aqui?
Sentem orgulho, sentem-se felizes, mas não conseguem compreender o que é que é o dia-a-dia num restaurante destes, acho eu. É difícil para alguém com 80 anos, e que trabalhou 50 anos de uma forma, compreender. E eles passavam igualmente muitas horas, entravam às sete da manhã e saíam às dez da noite.

Como é que se desmistifica a alta cozinha?
Só posso falar do Fifty Seconds e dos sítios por onde passei: é uma entrega total. Tens de viver para isto. Não podes viver a meio gás porque senão não consegues trabalhar a este nível. Vives para isto, trabalhas para isto e descansas para isto.

Fifty Seconds
©Manuel MansoFifty Seconds

Ainda existe preconceito em relação ao fine dining? Aquela ideia de muito caro para pouca comida.
Sim. Às vezes tenho clientes que chegam à cozinha e dizem assim: ‘Epá, aqui a gente paga, mas eu vou completamente cheio’. Eu, se estivesse lá fora, também não gostava de sair com fome.

E como é que se explica o preço de uma refeição? O Fifty Seconds é caro.
A partir do momento em que o cliente faz a reserva, a forma como a reserva é feita, a forma como é recebido pela nossa host, a forma como entra no elevador e a viagem que faz até cá cima. Senta-se na mesa e tem a melhor cadeira, a melhor toalha, a melhor mesa, o melhor guardanapo, os melhores talheres, os melhores copos, o melhor serviço de sala, o melhor serviço de vinhos e o melhor produto que pode ter. No final é isto tudo que justifica o preço. Nós somos 20 pessoas a trabalhar para 25 lugares. Em termos de talheres, aqui gastámos 79 mil euros, 70 mil euros em pratos. No final, o menu de degustação sem comida, são 1200 a 1300 euros por pessoa (preço de custo que gastámos numa fase inicial do projecto).

E também não poupa no produto?
Não [risos].

Há uma responsabilidade de fazer as pessoas perceberem que estão a comer o melhor?
A coisa que mais defendo é a honestidade com o cliente. As pessoas podem dizer que é caro, mas quando se sentam aqui e têm a experiência eu duvido que continuem a dizer que é caro. Vão dizer que gastaram o dinheiro, mas que se sentem compensadas por tudo o que gastaram porque receberam tudo o que podiam receber de melhor. Isso é uma coisa que a mim me preocupa muito, quero que a pessoa sinta que está a comer o melhor que podia comer não a nível nacional, mas a nível mundial. No dia que não for assim não estou aqui a fazer nada.

Gostava de vir a ter um restaurante seu?
Não sei. Nunca penso a minha vida a muitos anos, vou pensando sempre de ano a ano. Neste momento, estou no Fifty Seconds, vivo o Fiffty Seconds e nem consigo viver outra coisa ao lado. Às vezes posso pensar nisso? Posso. Sei cozinhar, se o restaurante for bom, tiver sabor e tiver qualidade, está cheio. É um negócio rentável dentro do possível, mas também é preciso coragem para fazer esse passo porque também é preciso investimento.

Sente que o Fifty Seconds lhe deu um palco?
Acho que tive sorte quando voltei para Portugal em ter um projecto destes. Temos uma empresa que tem poder financeiro e que desde o dia 1 não meteu entrave nenhum em dar o melhor ao cliente. Isso permitiu-me a mim poder trabalhar com o melhor, desenvolver da melhor forma as minhas técnicas e as minhas qualidades e fazer-me mostrar às pessoas num palco onde posso brilhar porque estou num sítio que foi feito para isso. Eu costumo dizer que me deram um Ferrari, mas podia não ter mãos para o conduzir e aí tinha de vir outro.

Fifty Seconds
Mariana Valle LimaPombo Royal

Um restaurante como este tem clientes habituais?
Temos muitos clientes habituais. Temos mais ou menos 30 clientes que vêm uma a duas vezes por mês, pelo menos.

E que relação se estabelece com essas pessoas?
Nós damos uma média de 130 refeições por semana, isso dá quase 500 refeições por mês. É claro que não temos uma relação próxima com 500 clientes, mas os 20 ou 30 que vêm cá com frequência são clientes que têm o meu número, telefonam-me antes, dizem-me o que gostavam de comer e eu adapto o menu consoante o que queiram.

Qual foi a sua grande descoberta gastronómica?
Fui a Itália passar férias e fui comer a vários três estrelas Michelin para perceber o nível em que estão e o que precisamos de fazer para estar a esse nível. Percebi que tanto em Itália, como em Nova Iorque, eles não são mais nem menos do que nós. Simplesmente estão em sítios diferentes. Quando pensas em Nova Iorque pensas no mundo. Quando pensas em Portugal, pensas numa bolinha. É a única diferença, acho que essa foi a minha grande descoberta gastronómica.

Rota das estrelas

O nome anda associado a uma estrela Michelin há já vários anos – o que é notável, considerando que Pedro Pena Bastos ainda só tem 31. À frente do Cura, o restaurante que abriu no hotel Ritz no Outono de 2020, o chef convenceu enfim os inspectores, depois de ter andado lá perto na Herdade do Esporão (este ano também distinguida) e de ter prometido fazer o mesmo com o Ceia (que entretanto fechou). De Reguengos ao Ritz, Pena Bastos desenvolveu uma ideia de cozinha com sentido telúrico, atenta à sazonalidade e à origem do produto, apostada em complexificar cada criação até que tudo fique reduzido à sua simplicidade essencial e o fine dining possa, afinal, aproximar-se de comida de conforto.

  • Haute cuisine

Não foi a noite que se esperava, mas foi ainda assim melhor do que a edição anterior quando apenas dois restaurantes saíram premiados (o 100 Maneiras, de Ljubomir Stanisic, e o Eneko, do basco Eneko Atxa, ambos em Lisboa). Na gala de 2021 do Guia Michelin para Portugal e Espanha, que aconteceu em Valência, foram cinco os restaurantes portugueses a conquistarem uma estrela. O maior destaque vai para o restaurante da Herdade do Esporão, em Reguengos de Monsaraz, liderado pelo chef Carlos Teixeira, que não só conquistou a primeira estrela como venceu uma estrela verde, pelo compromisso com a sustentabilidade. Em Lisboa, só o Cura, no hotel Ritz, do chef Pedro Pena Bastos foi distinguido nesta edição. A boa notícia é que nenhum dos anteriores perdeu a estrela. 

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