Esta refeição custou-me três chamadas, um e-mail, mensagens em duas redes sociais e uma pungente sensação de que começo a ficar fora de prazo. No fim, ainda tive de cozinhar. Mesmo assim, garanto-me capaz de repetir tudo de novo. Mas voltemos ao princípio.
Por esta altura, já todos experimentámos a neura do confinamento. Vamos sobrevivendo, mas não há como evitar. Esta merda é fodida.
Dizem-me amigos (que eu não sei disso) que uma das coisas mais fodidas é não foder. Está-se sempre com os filhos em cima (maior anti-coiso); ou o parceiro de pantufas perde poderes; ou fica-se assustado com o bicho nos outros – nunca se sabe se aqueles peitorais do Tinder não escondem uma insuficiência respiratória aguda e infecciosa. É tramado.
Outro grande problema é a impossibilidade de viajar. Não isso de “vá para fora cá dentro”, um contrassenso. Viajar, mesmo. Sair. Fazer malas. Ultrapassar fronteiras. Ouvir línguas. Viajar, mesmo, dá-nos oxigénio, muda-nos a cabeça de assunto. De sítio. De gente. De comida.
Ora, não tendo solução para nenhum dos dois constrangimentos, tenho um analgésico para o segundo. Há take-aways em Lisboa que, momentaneamente, nos podem levar até longe, mesmo que seja só por 45 minutos. Esta semana, por exemplo, quando dei por mim estava no vale de Bekáa, na região montanhosa de Zahlé, Líbano, chinelo no dedo e um calor bom para refrescar com tabbouleh.
A responsável pela viagem foi a Colher Torta, que é a Ana Leão. Radicada no Porto, Ana Leão desceu a Lisboa com o segundo confinamento. Sem cozinha própria, o amigo e cozinheiro Zé Paulo Rocha ofereceu-lhe os fogões d’O Velho Eurico, tasca de rapaziada jovem já aqui elogiada, para fazer o que gosta. E ela fez.
Actualizou o Instagram, pôs fotos do que ia cozinhando e montou menus de rotação semanal ao sabor do que o mercado dava – “e outras situações”. Numa semana, aparecia aquela “regueifa assanhada”, noutro post ficávamos a saber que os “pitos” já estavam “em brasa” e que haveria falafel, mas “não do xunga” (“Este falafel não é do xunga. Para aqueles que arriscaram provar o meu hummus sem ser do xunga, aconselho este”); já esta semana, houve kachapuri, o pão da Geórgia (“aquela cena com queijo e ovo que viram no meu vídeo”).
Comunicação graciosa e engraçada, sem merchandising profissional, sem logos sofisticados nem embalagens fofas nem instruções normalizadas — mas com boa comida e boa escrita e boa onda.
Acompanhou o saco (de papel kraft, vá) entregue em casa um papelinho escrito à mão pela própria Ana Leão, cheio de dicas boas. Não era só: frite o falafel na frigideira. Eram também dicas sobre como saber quando o azeite está à temperatura boa (“quando o grão de milho ficar pipoca, coma a pipoca e ponha o falafel”); como conservar o tabbouleh; como estender a massa (“fininha”) para o pão pita.
Nada muito complexo, até porque o espírito era agarrar na focaccia (acabada de fazer, ainda quentinha) e nas pitas e ir barrando os molhos: labneh (queijo feito à base de iogurte drenado e salgado); zhoug (molho picante, pouco, com coentros e alho); romesco (saltinho à Catalunha, pasta com frutos secos e pimentas); e o hummus (com uns grãos fritos inteiros no topo, maravilhosos).
Tudo bem feito, feito de raiz, assente no Médio Oriente mas olhando para o Mediterrâneo, com doses generosas de azeite e de acidez (por vezes, bastante) e um brownie a finalizar, só para nos reposicionar no Ocidente.
Quase tudo pouco ortodoxo, que Ana Leão é um espírito livre e criativo. Olhando para o tabbouleh, por exemplo, temos o bulgur, base da salada libanesa. Mas o resto é freestyle: coentros, sauerkraut (couve fermentada), couve kale (fresca), vinagres caseiros (pêra, tinto), sultanas embebidas em chai (mistura de especiarias), batata doce, pevides de abóbora, sésamo. Um tabbouleh nada ortodoxo, mas que cumpre o destino do tabbouleh: ser uma salada completa e vibrante capaz de nos fazer atravessar a cordilheira do Monte Hérmon em pleno Verão e ir dormir a sesta num campo de canábis na Síria.
Esta semana, com certeza, a viagem será outra. Uma coisa está assegurada: vai divertir-se, vai sair do sofá com vista para o telejornal da Covid e vai emocionar-se.
No final mostre o seu amor. Não é o mesmo que fazer amor. Mas ajuda.
Encomendas para a página de Instagram da Colher Torta (@colhertorta), até domingo. Entregas de terça a sexta-feira. Preço médio: 40€ (para duas pessoas).
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