Os restaurantes voltaram a fechar mas as portas estão entreabertas para take-away e entregas ao domicílio, o modelo de negócio possível. Mantenha o seu apoio aos restaurantes locais, aos seus restaurantes de sempre ou não adie a "visita", ainda que diferente, àquele que tinha na bucket list. Mantenha os rituais de brunch, prove uma boa massa fresca, baos e dim sum artesanais, leve a comida de autor para casa e recrie a experiência gastronómica possível na mesa da sala. Estes restaurantes são lutadores e sobreviventes. E continuam a entregar-lhe comida, seja através das plataformas de entrega (que já tomaram as devidas precauções) ou pelos próprios meios.
Comer é um verbo que teimo em conjugar no gerúndio. Gosto muito de comer, evoco a toda a hora o que comi, exalto-me na antecipação do que comerei. Mas o que me enche mesmo as medidas é ir comendo.
O gerúndio é o tempo ritual, da memória a acontecer; é o lugar onde o prazer vive e eu faço por demorar-me nele. É sobretudo por isso – e menos por intransigências de um palato pretensioso – que sou avesso à fast food. Raramente encomendo comida que leva tão pouco tempo a fazer quanto a desmilinguir-se. Mas de quando em vez lá cedo à tentação, e o essencial da história repete-se: começa com uma larica de janado e acaba com um remorso de penitente.
Penso nisto no momento em que encomendo jantar, num domingo de sornice e indulgência.
É a primeira vez que experimento o Reco Reco, serviço de entregas criado pelo Pigmeu, o restaurante de Campo de Ourique que fez fama a trabalhar carne de porco nose to tail, que é a maneira inglesa de dizer que o faz à boa maneira portuguesa, aproveitando toda e cada parte do bicho. A ementa, desenhada para este tempo de confinamento, é feita de gordices suínas, pensadas para criar água na boca e deixar nódoas no sofá. E eu decido empanzinar o serão com três doses para dois.
Começamos com um cheese burguer (11,50€). Óptima a carne da Herdade Freixo do Meio, santuário da criação biológica ali nas bandas de Montemor-o-Novo (quem quiser pode encomendá-la, que um dos pontos de entrega em Lisboa é, precisamente, o Pigmeu). Chega entalada num pão de brioche que se gaba de ser feito à mão, ligeiramente tostado, e montado com uns picles, folha de espinafre, cheddar e um molho com toque citrino, certeiro para equilibrar a gordura do reco. É bom. Mas será a peça menos surpreendente deste tríptico.
Segue-se a mini-bifana porcalhona (9,75€), uma das mais afamadas alíneas na ementa do Pigmeu e uma das poucas ofertas do restaurante que está disponível também neste serviço. A carne é de uma macieza amorosa, chega servida num interessante pão de batata doce fermentada e acompanha uma dose extra de molho feito à base da gordura onde o grunho cozinhou. O conjunto é guloso, convida a lambuzar os dedos com requinte javardo, e o seu único grande defeito vem noticiado no título: “mini”. Uma destas noites – penso para comigo – mando vir duas porcalhonas.
Por fim, uma katsu sando de cachaço (14€). Ora, katsu sando, recordemos, é uma moda japonesa que aterrou por cá nos idos de 2018 e se multiplicou por umas poucas ementas e muitas contas de Instagram."Katsu" é abreviatura para katsuretsu, que significa costeleta; e "sando" é como a malta lá no Japão chama às sandes (sim, bem sei, há quem queira que por cá também se diga “sande”, mas as duas formas são possíveis no português e o singular soa a coisa que um choninhas come com o mindinho esticado).
Trocado por miúdos, katsu sando é uma sandes de panado de porco, preparada com minúcia japonesa: a carne é revestida com panko (uma farinha crocante feita de pão desfeito e levemente tostado) e servida num pão de leite alto e fofo (shokupan) com couve branca desfiada. Na versão Reco Reco, usa-se o cachaço de bicho alentejano, tenro e entremeado por uns valiosos filões de gordura, envolve-se couve branca e beterraba numa maionese ligeira, e entaipa-se o conjunto num levíssimo pão de leite feito à mão na Bri_o, por Miyuki Kano, padeira descendente de japoneses (procurem no Instagram).
E é aqui que a porca torce o rabo – obviamente, de contente – e eu dou por mim a pensar que é abuso chamar fast food a este quadrado perfeito. É que por mais velozes que eles sejam a aviar o pedido e por mais lampeiro que eu seja a despachar a lambarice, o primor que tenho em mãos é resultado de uma cozinha de vagar, feita com tempo e preceito. Além disso, à medida que vou conjugando as palavras japonesas e me demoro no sabor que o porco alentejano lhes dá, katsu sando soa-me cada vez mais a gerúndio.
Encomendas no site do Reco Reco, todos os dias, 12.00-15.00 e 19.30-22.00. Também em take away no restaurante Pigmeu (Rua do 4 de Infantaria, 68). Em caso de dúvida, usar WhatsApp: 91 327 7086