É inevitável a analogia com o trabalho de vencer na cozinha. Pensas na terceira estrela?
Não. Obviamente se algum dia lá chegarmos é uma alegria gigante, mas não vai ser nunca uma frustração. Nem para mim, nem para o Zé [Avillez], nem para ninguém aqui. Trabalhamos todos os dias para fazer com que as pessoas que se sentam à nossa mesa saiam tremendamente contentes, que tenhamos feito alguma coisa na vida delas, mas também na nossa. E ir para casa a pensar: ‘Que grande dia’. Isto é que faz a minha pilha estar cheia de energia para a vida e para o trabalho.
Mas nem sempre é um mar de rosas.
Há dias que são mais pesados, mais cansativos e no dia a seguir alguém tem de ligar o gás a essas pessoas para ver outra vez o sorriso na cara delas. E esse é um trabalho que não é só meu, é de todos. No dia em que eu chegar cá mais fraco, as pessoas têm de querer ligar o meu gás também. E isso acontece.
Com 40 anos, pai de dois filhos, Catarina de 13 e Filipe de 9, David Jesus nasceu na Bobadela, onde mora até hoje. Filho único, de mãe portuguesa e pai indiano, tem desde novo uma forte ligação à cozinha: enquanto espaço físico – “era o ponto central da casa, onde eu fazia os trabalhos de casa, onde jantávamos” – e enquanto aprendiz e assistente. A especialidade eram os ovos, as saladas, as sopas. “Desde miúdo que me lembro de tratar dos pequenos-almoços, dos lanches, de ajudar os meus pais.” Desses tempos recorda também o fascínio de assistir à confeção dos temperos indianos do pai, que se mudou de Damão para Portugal com 28 anos. “Ele comprava as especiarias e cozinhava segundo um livro de receitas da avó dele. Eu adorava os cheiros, as receitas, os sabores.”
E o livro? Ainda o usas?
É uma peça de família, mas em casa de ferreiro, espeto de pau. Dou muito valor sentimental àquilo, mas não lhe toco. Digo isto com pena. Há três anos fui a Damão com o meu pai conhecer a família que ainda lá está, os sítios por onde o meu pai viveu. Foi uma viagem muito gira.
Mas tens alguma influência indiana na tua cozinha?
Talvez. Se bem que a minha mãe sempre foi muito seguidora da cozinha portuguesa. Foram os pais que o incentivaram a seguir a área de cozinha. “Foi uma fase estranha da minha vida. Não sabia o que queria, só pensava em futebol, mas já tinha percebido que não ia ser o meu futuro.” Prestes a fazer 16 anos, numa conversa séria de família, a mãe falou-lhe na carreira de cozinheiro. Pareceu-lhe boa ideia. Entrou na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e fez o curso de equivalência ao 12º ano. “Aos poucos é que fui ganhando a paixão e amor pela cozinha a sério. Mas aí a experiência valeu mais uma vez por aquilo que sempre consegui retirar de melhor dos sítios: as pessoas, a amizade.”
Cresceu e estudou “quase numa aldeia” e sempre valorizou o espírito de grupo. “Na escola, na catequese, no futebol, encarava as pessoas como os meus amigos. Sempre fui muito ligado à união, ao espírito de equipa, à amizade. E nas cozinhas é isso que faz a diferença. A amizade cresce e torna as coisas especiais.”
No fim do curso, trabalhou em restaurantes de cozinha brasileira, italiana (com o chef Augusto Gemelli e no Hotel Dom Pedro) e, em 2001, tinha então 20 anos, surgiu a oportunidade de ir abrir o hotel Pestana Palace com o chef francês Aimé Barroyer. “Como sempre, decidi na base da amizade, porque era uma brigada com seis pessoas com quem tinha estudado. Era um bom sítio para estarmos todos juntos.”
Estamos a falar das brigadas à antiga, estilo escola francesa?
De certa forma, sim. Passei lá seis anos e meio, aprendi imenso, a carga de trabalho era muito grande, física e psicológica. Era solteiro, vivia em casa dos meus pais, deixei de jogar à bola com os amigos, mas a nível profissional foi muito bom. Foi o primeiro contacto com a alta cozinha e há 18 anos o panorama da alta cozinha portuguesa era diferente. Vinha de alguém [Aimé Barroyer] com conhecimento e experiência que nós não tínhamos cá. Que nos obrigava a fazer pesquisas sobre a história e o receituário português, a irmos buscar os sabores e as tradições mais antigas.