Num ano extraordinário como o de 2020, a restauração mergulhou numa longa travessia do deserto. Os clientes escasseiam, as dívidas acumulam-se e alguns restaurantes não têm outra alternativa senão encerrar. Mesmo no universo da alta-cozinha, normalmente imune a crises, sofre-se na pele o impacto de uma pandemia que continua a virar o mundo do avesso. No meio de toda esta loucura, o prémio gastronómico com maior relevância no meio acabou mesmo por acontecer. O Guia Michelin para Portugal e Espanha foi conhecido há dias mas, ao contrário de edições anteriores, as novidades para o nosso país são modestas. Ljubomir Stanisic, 42 anos, é agora dono de uma estrela entregue ao seu 100 Maneiras, no Bairro Alto; a outra foi morar para Alcântara, no Eneko Lisboa, restaurante de Eneko Atxa, chef basco de 43 anos com seis insígnias douradas no currículo. E de que são feitos, afinal, estes cozinheiros que voltam a reforçar a posição de Portugal como um destino gastronómico?
“Já o conhecia de nome e da fama que tinha, de ser duro na cozinha”, começa por recordar Vítor Adão sobre Stanisic. O chef do Plano, na Graça, foi o seu braço-direito durante vários anos, mas o primeiro dia em que partilhou uma cozinha com o bósnio continua-lhe bem vivo na memória. “No primeiro dia em que trabalhei com ele, pediu-me para fazer umas receitas que deixou num papel e saiu. Quando voltou, disse que podia despedir-me. Perguntei se tinha feito algo de errado, e ele disse-me: ‘Fizeste, foste o gajo mais organizado que já vi. Numa hora fizeste estes pratos todos por isso podes despedir-te do teu trabalho’. Foi assim que comecei no Six Senses, no dia em que fazia 26 anos.”
Ao lado de Ljubomir viveu intensamente. “Foi uma loucura. Dávamos 120, 140 jantares por dia no Bistrô, na altura. E ele muitas vezes cozinhava tanto como nós. Fizemos viagens incríveis: fomos a Barcelona, a Bilbao, a Helsínquia. Sempre a comer e a descobrir. Foi uma época muito boa”, resume Adão. Mas os caminhos separaram-se. “Acompanhei o projecto do 100 Maneiras e quando fui lá jantar consegui rever-me um bocadinho em certos elementos. É muito bom sentir que deixas um pouco de ti nos projectos por onde passas. A equipa é incrível, o serviço foi pensado ao detalhe, o espaço é brutal”. E é por isso que Vítor Adão não hesita em afirmar que a “estrela é mais do que merecida”.
Restaurante cheio agora, mas e depois?
Depois de reabrir há ano e meio o 100 Maneiras, na porta ao lado do original, Ljubomir não pode dizer que a estrela fosse algo que não estivesse à espera. “Soube-me bem o reconhecimento, não posso mentir. Foda-se, finalmente uma boa notícia este ano”, assume o chef à Time Out, sobre o que sentiu quando soube da vitória. Não foi uma distinção que procurasse muito, mas sabe que o trabalho, desde que abriram em Março de 2019, “foi sempre a um alto nível, o mais elevado possível”. A vida, conta o chef, encarregou-se de lhe mostrar que não vale a pena cozinhar para o reconhecimento, mas sim para agradar aos clientes.
E o que muda uma Michelin, perguntamos-lhe. Nada, ou quase nada, responde. “A única coisa que a estrela me trouxe foi uma grande ressaca e dor de cabeça no dia seguinte. Para já. Trouxe também uma certa reputação. Neste ano de merda, foi genial, foi óptimo, mas não sei o que vai mudar”, diz. O restaurante está cheio para os próximos dias, mas o que acontecerá em Janeiro e Fevereiro, “quando deixar de ser notícia?”, pergunta-se. Não vai aumentar preços. A equipa vai continuar o trabalho, mas Ljubomir é da opinião que “vão entrar os piores tempos de sempre”. “No próximo trimestre vai falir tanta coisa. Vai fechar tanto restaurante que é surreal”, diz convicto.
A última machadada foi o recuo do Governo em relação aos horários da véspera de Ano Novo. “Tinha os dois restaurantes cheios. Passaram paras as 22.30 e toda a gente desmarcou. Isto caiu que nem uma bomba. Tenho produtos no congelador e vou ter que os oferecer a uma associação de solidariedade porque senão vai tudo para o lixo”. O chef diz estar-se a endividar constantemente. “Vamos lá ver até quando me vou aguentar. Eu e todos os outros”. E deixa o aviso: se o Governo não olhar para a restauração como um sector que investiu tanto no país, “vamos todos ao chão.” Para o chef que este ano já fez uma greve de fome e subiu a um palanque em frente à Assembleia da República, “a política é fria e olha para o seu umbigo”. Os dias de greve em São Bento foram “ a maior estupidez humana”, reconhece. “É muito estúpido um gajo passar fome, mas foi o último recurso de chamada de atenção”. Se o reconhecimento neste ano tem um sabor agridoce, isso não sabe responder. “Não sei como é o meu amanhã”, diz, mas de uma coisa está seguro – deu tudo e já não está para lutar. “Dei a minha saúde, é preciso as pessoas unirem-se, lutar pelo mesmo caminho”. E é peremptório ao afirmar que “é isso que não está a acontecer”.
Sensibilidade e humildade
É sempre difícil sintetizar uma pessoa em poucas palavras. Quem o diz é João Wengorovius, ávido gastrónomo e conhecedor da cozinha praticada por Eneko Atxa. Wengorovius, que tem dedicado os últimos anos a correr o mundo com o objectivo de conhecer e de comer em alguns dos melhores restaurantes, lançou em 2018 o livro We Chefs – um trabalho que pretende mostrar a dimensão mais profunda de 21 dos melhores chefs do mundo e como estes não são apenas cozinheiros, mas artistas empreendedores e criativos. Foi numa dessas incursões gastronómicas que se cruzou com Eneko e foi também por esse motivo que lhe pedimos que nos falasse do chef basco e do que é a experiência de se sentar à mesa de um dos seus restaurantes.
“É uma pessoa de uma enorme sensibilidade e de uma grande humildade”, resume. Foram essas as sensações com que ficou ao privar com Eneko. Mas é a partir da experiência nos restaurantes que também fala de alguém “muito preocupado com o seu entorno e com uma grande preocupação com o cliente”. Uma das características que mais o impressionou ao comer no Azurmendi (em Labarretzu) e no restaurante de Lisboa foi, talvez, a forma como a sustentabilidade e o seu impacto é posta em prática. “Há uma harmonia e fluidez”. As pessoas gostam de trabalhar com ele, diz. “Há mais chefs que o fazem, mas é um dom saber mobilizar pessoas”, acredita. Além da componente mais humana do ofício, o gastrónomo não deixa de elogiar a preocupação com “o texto” nos menus e a busca incessante de “ingredientes loucos”.
Será que em Portugal falta alguém com esse perfil – um dado que explicaria, em parte, a superioridade espanhola no guia? Wengorovius acredita que se trata apenas de “uma questão de escala, de maturidade, de investimento, de explicação e de percurso”. Espanha é um país com uma tradição forte na alta-cozinha e Portugal aparece como um país mais pequeno. É bom ter a mesma bitola dos espanhóis, mas para isso defende que poderia haver mais inspectores portugueses – acredita-se que haja apenas um.
“A estrela tem de ser a consequência de um trabalho bem feito”
O objectivo de abrir o Eneko em Lisboa foi “satisfazer cada um dos clientes que chegam ao restaurante”, refere o chef basco num email enviado à Time Out. Para Eneko, não há dúvidas acerca do valor do trabalho exaustivo dos inspectores, ainda que a questão sobre se há uma desconsideração em relação aos restaurantes portugueses seja “um tema muito difícil de analisar”.
Inaugurado em 2019 e com reabertura prevista para Março do próximo ano, o restaurante lisboeta é a prova de que “a estrela tem de ser sempre uma consequência de um trabalho bem feito”. Num ano tão improvável quanto problemático, o chef basco reconhece que a insígnia dourada do guia de pneus “é um foco de atracção para um público aficionado da gastronomia” – e que isso é muito importante no contexto actual.
+ O renascimento do 100 Maneiras