É o chef português com mais estrelas Michelin, com duas a chegarem de rompante no último ano, primeiro à Tasca, no Hotel Mandarin Oriental Jumeira, no Dubai, e depois ao Encanto, no Chiado, mesmo ao lado do Belcanto, onde há muito se espera a terceira estrela – essa é que ainda tarda.
Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 672 — Inverno 2025.
Quando há cerca de um ano, Vítor Matos foi chamado por duas vezes ao palco da primeira gala do Guia Michelin dedicada em exclusivo a Portugal, a surpresa foi geral. Nem o próprio achou que tal poderia ser possível. Ganhou uma estrela para o 2Monkeys, então aberto há dez meses com o chef Francisco Quintas, em Lisboa, e a segunda para o Antiquvvm – o único restaurante a conseguir tal distinção em 2024. Viu ainda Rita Magro do Blind, restaurante também de Vítor Matos no Porto, ser coroada como jovem chef do ano. “Não estava nada à espera”, diz-nos uma e outra vez, sem papas na língua, seguro do seu valor e do caminho feito até hoje.
Natural de Vila Real, onde vive, e a fazer 30 anos de carreira, o chef não tem mãos a medir e assim vai continuar. Depois da saída abrupta e inesperada da equipa de cozinha do 2Monkeys, apenas quatro meses depois da estrela, foi preciso escolher novas pessoas sem que o restaurante perdesse o andamento. Para o lugar de Francisco, agora em Amarante no Largo do Paço, na Casa da Calçada, entrou Guilherme Spalk, com quem Vítor Matos diz ter criado uma maior afinidade. O ano deu ainda para abrir com Hugo Rocha, braço direito de muitos anos, o Oculto, em Vila do Conde, onde a ambição não é pequena. Nunca é. E é por isso que em 2025, é possível que o vejamos novamente a triunfar. Há também dois restaurantes para abrir, um de fine dining e outro de cozinha tradicional, ambos na Quinta da Vacaria, no Douro, com a chancela do Torel. “O ano de Vítor Matos é este que vem agora”, brinca, momentos antes da entrevista e confidenciando que o segredo do sucesso “é escolher as peças certas para os sítios certos”.
Esperava que 2024 fosse o ano que foi?
Em relação ao 2Monkeys, tínhamos uma linha clara do que ia acontecer porque tínhamos a noção do que estávamos a fazer, merecíamos chegar a esse patamar. Em relação ao Antiqvvm, não estava à espera de todo. São oito anos, chegámos a um projecto que tem maturidade, é trabalho de uma equipa de muitos anos. Foi o culminar destes anos todos. Foi um ano surpresa, não estava à espera. Nem eu, nem ninguém. Notou-se pelos meus colegas. No fundo, nós vivemos um bocado do que os outros dizem e do que se escreve e depois foi tudo ao lado do que se disse e do que se escreveu. Em momento algum alguém falava que íamos ganhar seja o que for. E isso foi bom.
Foi uma surpresa, mas era um objectivo. Ou não?
Não é um objectivo de vida, mas é claro que é um objectivo. As equipas vão evoluindo, as coisas vão melhorando e vão encaixando – a perfeição na recepção ao cliente, a simpatia, o serviço, a comida bem feita, os pontos acertados, os produtos frescos. Isto não é um prémio individual, é um prémio de equipa. Quando se premeia um restaurante que chega a esse nível é um acumular de várias situações, não é só o chef. O chef é só uma peça, um peão que está ali para dar o exemplo. Os projectos só avançam quando têm por trás equipas fortes. Não só equipas, mas líderes também. Em todos os espaços tenho sempre um líder. Nós temos aqui [no 2Monkeys], o Guilherme [Spalk], num projecto a quatro mãos. Temos no Oculto, outro projecto a quatro mãos, o Hugo Rocha. No Antiqvvm, o meu braço direito é o Tiago Dias. No Vidago [Palace], tenho o Duarte [Apolinário] e o André [Ferreira]. Em Guimarães, a Liliana [Moura]. Com a Rita Magro, no Blind, já estamos a quatro mãos. Cada vez mais, [o caminho passa por abrir] espaços com alguém comigo. Eu não consigo estar em todo o lado. A vida é demasiado curta, o tempo é muito escasso, e nós precisamos de pessoas-chave connosco. Devo a segunda estrela ao serviço e à cozinha do Antiqvvm e às pessoas que trabalham diariamente.
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Mas houve algum momento em que definiu um caminho para esta segunda estrela?
Posso dizer com toda a naturalidade que o ano em que ganhámos a segunda estrela foi um ano brilhante. Pela primeira vez nos últimos anos, sentimos que não havia reclamações, as pessoas estavam a adorar, havia harmonia no que estávamos a fazer. Foi o ano mais perfeito. Sentimos isso no dia-a-dia. No 2Monkeys, também acontece isso. Levamos com o feedback directo dos clientes. No Oculto conseguimos ter o feedback directo também porque temos cozinha aberta e a proximidade permite. A não proximidade obriga-nos a um feedback mais secundário, através da sala. E cada vez mais o futuro da cozinha tende a ser isto, uma cozinha de proximidade, em que as pessoas sentem os cozinheiros. Antigamente, cozinheiro era aquele bicho do mato. Hoje, o cozinheiro é...
Uma estrela?
Não. É cada vez mais um personagem que vive realmente a cozinha, não tanto como uma obrigação. Eu acho que a cozinha se tornou cada vez mais uma maneira de estar na vida. Não diria estrela porque isso é dar um nome falso, embora entenda. Às vezes, há aquela ideia de que os chefs são vedetas. Não acho, os chefs são cada vez mais terra a terra, estão preocupados com causas, são pessoas com cultura, percebem o que está a acontecer no mundo, não são pessoas egoístas.
Há uma união maior também entre profissionais?
Muito. Não só união, há um respeito profundo entre chefs, com ou sem estrela. Não há aqui divisão de mundos. Eu saio para ir comer a um restaurante sem estrela e vou comer aos restaurantes dos meus amigos. Esse intercâmbio é tão bom. Faz-me lembrar alguns jantares que fiz quando abri o Antiqvvm, ainda nem tínhamos estrela. É engraçado, acertei em todos os prognósticos. Todos os chefs que ganharam estrelas nos últimos anos cozinharam no Antiqvvm.
Não tinham estrela quando passaram por lá e depois ganharam, é isso?
O Rui Paula veio cozinhar e não tinha estrela, o Vasco [Coelho Santos] veio cozinhar e não tinha estrela, o Pedro Pena Bastos veio cozinhar e não tinha estrela, o Rui Silvestre veio cozinhar e não tinha estrela. Vieram todos cozinhar comigo em vários eventos que fui organizando.
O que é que isso diz de si? Que é atento e não está fechado no seu universo?
Não podemos estar fechados porque senão arriscamos a ser mais um. Temos de estar abertos ao que está a acontecer. Eu estou cada vez mais aberto a esta ideia de juntos sermos mais fortes.
Quando diz que na Gala a surpresa foi geral e que mesmo os seus colegas e a imprensa ficaram surpreendidos, o que é que ninguém viu?
Não se falava [de nós], nem [nos] visitavam. Naquele ano, não recebemos nenhuma revista, nenhum jornal, ninguém. Tínhamos tantos clientes, estávamos tão ocupados, tão cheios, que não conseguíamos... Eu tinha amigos que queriam reservas e eu não tinha lugares. Nós tivemos sete meses seguidos cheios ao almoço e ao jantar. Foram sete meses surreais.
Às vezes, há aquela ideia de que os chefs são vedetas. Não acho, os chefs são cada vez mais terra a terra, estão preocupados com causas, são pessoas com cultura, percebem o que está a acontecer no mundo, não são pessoas egoístas.
O que desencadeou isso?
Não foram portugueses, foram mais estrangeiros. Isso é que é incrível. 98 ou 99% eram estrangeiros. No outro dia, tivemos um cliente francês que veio de Paris para jantar no Antiqvvm e regressou no mesmo dia. Foi estranho. Ele chamou-me à sala e disse: ‘Estou habituado aos melhores restaurantes e vim de propósito porque ouvimos falar que aqui no Porto existia um restaurante diferente’. Nós estamos numa bolha, não uma bolha de mediatismo, mas as pessoas queriam reservas e não conseguiam. O facto também de as pessoas quererem uma coisa e não conseguirem...
Torna tudo mais apelativo.
Muito mais. Por exemplo, aqui no 2Monkeys só agora é que as reservas começaram a baixar um bocadinho. Mas ontem estivemos cheios, hoje menos, e voltamos a encher no fim-de-semana. Fizemos o ano com uma média de 300 refeições por mês com apenas 14 lugares.
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A procura já existia, mas há sempre um efeito maior quando se ganha a estrela?
Sim, mas eu digo isto sem medo nenhum: as pessoas vêm ao 2Monkeys para ter uma experiência 2Monkeys. Vão ao Antiqvvm para ter a experiência do Antiqvvm. Não vão ao Antiqvvm para estar com o Vítor Matos. Não vêm ao 2Monkeys para estar com o Vítor Matos. Vêm para ter a experiência no seu todo.
Mas querem ver o chef.
Não conseguem vê-lo em todos os espaços, infelizmente. Isto é um bolo, é a atmosfera que é criada – e este [2Monkeys] é muito fora da caixa, foge à regra de uma estrela Michelin politicamente correcta. Esta ideia de que a estrela é só toalhas na mesa, está tudo muito caladinho, música baixinha… Não há nada disso. E esta liberdade é muito importante. Às vezes, há a ideia errada de que as pessoas vêm para fazer teatro. Aqui, não. As pessoas têm que ser reais.
Para não ser forçado?
E as pessoas sentem a naturalidade dos projectos. Este cresceu muito rapidamente, o Antiqvvm demorou oito anos para consolidar e chegar à segunda estrela, tudo bem que ao fim de oito meses ganhámos a primeira. Acredito que haverá mais no futuro, mas só consigo saber no dia 25 de Fevereiro [data da nova Gala do Guia Michelin Portugal]. Eu acredito que vai ser um bom ano para Portugal.
E vamos vê-lo a subir ao palco novamente?
Eu vou estar lá a cozinhar, estou a organizar com o Ricardo [Costa] e com o Rui Paula, não sei se vou subir ao palco. Se subir, acho que não vou falar nada, vou deixar as minhas equipas falarem.
Mas há esse desejo, certo? O Oculto, por exemplo, nasce com a ambição de ganhar uma estrela, tal como já tinha acontecido com o 2Monkeys.
Este espaço foi criado para isso, nota-se. E o Oculto igualzinho, sem tirar nem pôr. Houve liberdade total para poder desenhar – fui eu que desenhei este fogão, falhei uma coisa ou outra... É muito difícil pensar num espaço tão pequenino. O que é que vamos fazer que seja arrojado e diferente? Esta ideia do balcão já existe no mundo, não é inovadora, mas acho que o 2Monkeys é muito diferente dos outros [restaurantes] todos. Os outros vivem muito da gastronomia, as pessoas vão pela comida, e aqui vêm à procura de duas coisas: comida e estar connosco, vêm para se divertir. São coisas diferentes e aqui misturam-se. Ao início criámos o fun fine dining. A ideia é ser divertido. Chamaram-nos malucos. ‘Estes gajos vão fazer aqui uma coisa a brincar com o cliente.’ Acredito que, neste momento, o cliente que nos procura vem à espera disso.
Da informalidade?
Muito. Muitos entram com medo, mas passados dez minutos já estão no nosso mundo.
Se o 2Monkeys e o Oculto, por exemplo, foram criados para ter uma estrela, significa que cria os conceitos à medida desse objectivo?
Claro. Mas não só isso. O Blind também foi criado com esse intuito, infelizmente tivemos uma pandemia pelo meio que nos travou e tivemos de redefinir o projecto duas ou três vezes. Demorou mais do que pensámos, mas voltámos a fazer o que gostamos. Mais uma vez, a importância da equipa e da liberdade. Liberdade na cozinha, mas também criativa. Liberdade de dar poder às pessoas para poderem também criar. As pessoas têm que se sentir à vontade e não castradas. Às vezes, os chefs castram as equipas e tem tudo medo e ninguém quer avançar. Aqui não.
Como é que funciona o processo criativo?
Os restaurantes são todos diferentes.
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Essa é outra pergunta. Ao criar diferentes conceitos, o que é os liga e o que é que os separa?
Nenhum é igual a nenhum. Nenhum faz pratos iguais. Às vezes, vejo-me à rasca quando chego a um espaço e digo, dá-me isto. A pessoa olha para mim e diz: ‘Ó chef, nós cá não fazemos isto’. Acontece-me. Acima de tudo, é perceber. Aqui, estamos em Lisboa. Cosmopolita. Gostamos de brincar. É o 2Monkeys. Liberdade criativa. O Antiqvvm nasce com toalha na mesa, um serviço mais clássico, mais perfeitinho, a cozinha é tecnicamente mais difícil, tem muitos elementos. Aqui, é mais rock'n'roll. Vamos ao Oculto e é completamente diferente: é mar, é produto local, é sustentabilidade. Só há dois produtos de fora que usamos de vez em quando, que é a trufa e o caviar – porque eu gosto. Vivemos muito aquela ideia do tributo aos pescadores, aos sabores locais, loiça bonita, restaurante lindíssimo, cozinha brutal, espaço para as pessoas poderem crescer. O Hugo [Rocha] trabalhou comigo muitos anos. Estamos a falar de pessoas que têm uma ligação à minha vida. A Rita [Magro] trabalhou no Antiqvvm. O Tiago [Dias], no Antiqvvm, está a trabalhar comigo há oito anos. No Vidago Palace, estamos no interior, estamos no Norte, temos de pensar um bocadinho mais no produto da terra, menos peixe, mais carne, mais fumeiro. Guimarães é um mini Antiqvvm inicial, estamos neste momento a fazer os pratos que eu fazia há oito anos, voltei um bocado atrás.
Por alguma razão?
Acho que não havia uma definição correcta do conceito. Era muito tradicional, muito simples e os donos deram-me a liberdade para fazer aquilo que eu achava que devia fazer e eu achei que devia ir buscar pratos onde fui feliz, pratos que funcionam e que as pessoas gostam. É tentar não arriscar demasiado. No caso do Antiqvvm, cada vez mais tentamos não arriscar demasiado. Tentamos fazer coisas seguras. Produto, sabor, qualidade, frescura, isso é que é o essencial.
Como é que definiria a sua cozinha?
É difícil, mas em todos os espaços há sempre aquela ideia do produto, é sempre uma cozinha emocional. Não faço uma cozinha que não mexa com os sentidos, que não mexa com as pessoas.
O que é uma cozinha emocional?
Pode ser no sentido de recriação de memórias, acontece no caso dos mais tradicionais. Ou pode ser no sentido de técnica, de cheiros, de sentimentos na mesa, ou do próprio serviço. Todos têm este lado. Ou é um lado emocional de estar à frente do chef, um lado emocional de um prato que nos remete para a infância, tudo isso é importante. As pessoas não vêm aqui à espera de comer um bife, encher a barriga e ir embora. Acima de tudo, nestes espaços as pessoas procuram uma experiência. Não tenho, mas vou ter um local de cozinha tradicional pura e dura, de tacho.
Se há 15 ou 20 anos se falava que podíamos identificar inspectores pela maneira de estarem na mesa, hoje não queremos identificá- -los, queremos é tratar os nossos clientes todos da mesma forma. Tratar todos como se fossem inspectores.
É um desejo ter um restaurante tradicional?
Vou ter, em Março. Vai ser o regresso à infância.
O chef já chegou a dizer que acredita que a cozinha tradicional ainda há-de receber uma estrela em Portugal.
Em Espanha, já há essa abertura. Com o Guia Michelin Portugal, o Guia começa a olhar para nós de uma forma diferente e eu acredito que há espaço para haver restaurantes com leitão com estrelas. Ou um cabrito ou um bom peixe ou um bom marisco. É único, é o que nos distingue dos outros, é a nossa tradição. Temos uma tradição tão rica em cada zona do país… Isto passa por haver mais restaurantes com duas e três estrelas. E não digo um, no mínimo, três/quatro em Portugal já. Era o mínimo para podermos dar uma estrela a restaurantes mais pequeninos. Eu gostava que houvesse uma estrela Michelin da cozinha tradicional.
Porque é que na sua cozinha não explora esse lado tradicional?
Tem a ver com os projectos.
Há uma grande influência do mundo e menos essa raiz.
Cada vez mais.
No 2Monkeys, por exemplo, é notória a influência asiática. Porque é que não vai buscar a raiz tradicional?
Devemos deixar [para] quem já faz tão bem. Eu não nasci para fazer leitão assado. Não nasci para fazer cabrito assado. Se me perguntar o que é que eu gosto de comer? Adoro comida tradicional, nada tem a ver com isso. Agora, o que é que eu gosto de fazer? Cada vez mais é viajar. O tempo é cada vez menor. Nós vivemos cada vez menos, eu faço 85 mil/90 mil quilómetros por ano de carro. Passo mais tempo na estrada do que a viver.
Vivemos cada vez menos ou mais ocupados?
Mais ocupados. Às vezes, metade do meu tempo é passado em viagens. É isso que me irrita. Esse tempo dava para fazer mais coisas. Eu adorava ter um restaurante super tradicional, mas temos que perceber o contexto em que estamos. Não estou a imaginar fazer uma coisa tradicional no 2Monkeys. O único espaço que se podia perfilar para cozinha tradicional seria Guimarães, que é uma cidade mais pequenina, tem menos clientes e às tantas precisava um bocadinho mais disso para se afirmar. O Blind não precisa nada disso, viajamos pelo mundo inteiro, é cada vez mais como o Antiqvvm. No início, quando abrimos o Blind, a experiência era muito teatral, neste momento estamos mais focados no produto e no sabor. Acho que o segredo da cozinha é isso, focarmo-nos na matéria-prima sem a estragar.
O que é que o limita?
Não estou limitado em lado nenhum.
Não se sente limitado em nada?
Zero.
No caso do produto, por exemplo. Um bom produto tem um preço, que até pode oscilar, e às vezes é preciso fazer essas contas. Isso não pode limitar?
Eu deixo as contas para os meus braços direitos, eles é que fazem as contas.
Guilherme Spalk, que escuta atentamente a conversa, intervém: “Nós pomos o que queremos, depois cobramos o que precisamos”.
Aqui é assim. No Antiqvvm, é parecido.
Isso obriga a subir o preço do menu?
Em todos os restaurantes, eu subo o preço sempre que é necessário. Às vezes, tornam-se impraticáveis, mas é aquilo que damos, aquilo que compramos, tem que ser. Os projectos têm que ser sustentáveis. Se não forem sustentáveis, não são projectos nenhuns. Aquela ideia de que está aqui um milionário a meter dinheiro todos os meses...
O restaurante é um negócio.
Têm que se pagar os ordenados, têm que se pagar os produtos. Existem alguns restaurantes no mundo onde o lucro não é importante, mas eu não trabalho em nenhum projecto desses. Nós fazemos sempre a coisa inversa. Não decidimos que vamos fazer menus a 100€ para depois procurar o produto [que encaixa]. Primeiro, fazemos os menus, a seguir fazemos o food cost – [se] custa tanto, temos de vender a tanto. No Antiqvvm, começámos com menus de 80€, há oito anos era muito caro. Fazíamos menus do dia a 25€ e durante três anos estávamos sempre cheios ao almoço e ao jantar quase ninguém. Chegámos a um ponto em que acabámos com o menu do dia e passámos a ter só menus de degustação. Deixámos de ter pessoas ao almoço para ter pessoas ao jantar.
Fazer restaurantes para ganhar uma estrela não é uma limitação? Ou seja, o Guia Michelin não o limita de alguma forma?
Não. Eu não vivo a pensar no Guia Michelin. Vivo a pensar em mim e nas equipas. O Guia Michelin é uma condição que vem depois. É o premiar de todo o trabalho de equipa. Claro que sonhamos com isso, não gosto de ser mentiroso, mas temos de ser realistas. Ninguém pode abrir um projecto e dizer assim: "Eu vou ganhar a estrela". É impossível.
Porque não se sabem as regras do jogo à partida?
Nós sabemos as regras. As regras são: o cliente mistério senta-se, come, paga e vai-se embora. E tudo o que ele comeu e bebeu e a maneira como foi servido tem que ser perfeito. Há um conjunto de coisas que têm que funcionar. Por mais que se diga que [o que conta para] uma estrela Michelin [é] a avaliação do que está no prato, a comida, eu acho que não.
O serviço também conta?
O serviço afecta a experiência. A pessoa que recebe na porta pode estragar o serviço todo. A experiência estrela Michelin tem a ver com a atitude que nós temos perante o cliente.
E que não pode variar?
É difícil responder a isso. Nós somos humanos e infelizmente há dias bons e dias menos bons. O chef não tem que se estar a rir para os clientes se tiver um problema. Mas tentamos sempre que não haja muita oscilação e que seja o mais perfeito possível. Eu digo à minha equipa: quando alguém não está bem é preferível que não venha trabalhar.
Para não influenciar?
Às vezes, acontece. Não está bem ou teve um problema. É preferível ficar em casa.
Especialmente num sítio como o 2Monkeys em que tudo acontece ao balcão.
Aqui não dá para disfarçar. Aqui se cair, pumba, dói. Um tacho cai ao chão com molho e acabou-se o jantar.
Mas isso pode acontecer numa cozinha.
As pessoas riem-se [risos]. Noutros sítios, é dramático, aqui não é tão dramático. Mas é isso, ser estrela ou não ser estrela, tem a ver com a capacidade de saber receber os clientes, a maneira como tratamos o produto… E eu não sou do Guia, não posso falar...
Mas como chef estrelado pode dizer se sente uma pressão maior.
Zero, não sinto pressão nenhuma. A pressão é quando nós podemos fazer alguma coisa.
E neste caso não depende de si?
Não depende nada de mim. Eles vêm cá, comem, pagam e vão-se embora. Nem sabemos quem eles são. Esta ideia errada de achar que nós sabemos… Aqueles clichés: deixou cair o garfo, deixou cair o guardanapo. Isso não existe, é tudo conversa de filmes. Se há 15 ou 20 anos se falava que podíamos identificar inspectores pela maneira de estarem na mesa, hoje não queremos identificá-los, queremos é tratar os nossos clientes todos da mesma forma. Tratar todos como se fossem inspectores.
Até porque o cliente hoje também está mais exigente e tem mais informação. Ou não?
O restaurante com estrela tem mais exigência do que um restaurante sem estrela. O cliente que vem está habituado a viajar e vem para fazer comparações. Não foi igual àquele, o outro foi melhor... Isso vai acontecer sempre porque somos humanos e os humanos gostam de comparar. Não há nada a fazer, é a realidade da vida. O que eu digo às equipas é para serem o mais verdadeiros possível. Em todos os espaços, fazerem o que gostam. Na nossa cozinha, nestes últimos dois anos, não houve pressão quase nenhuma... No caso do Antiqvvm, a criatividade passa sempre por mim, sou eu que faço os menus. Fecho os menus e digo: quero isto.
E nos outros restaurantes?
Observamos todos. Embora acredite que chegou o ano em que o Tiago [Dias] vai finalmente poder estar comigo. Eles vão chamar os restaurantes todos com estrela e ele vai subir comigo ao palco. É necessário esse reconhecimento porque as pessoas é que são os projectos. Não é o nome, não é o dinheiro que se mete, não é este fogão, não é este tacho, não é este copo xpto, não é este talher, são as pessoas.
Sendo que o chef rodeia-se habitualmente de jovens.
O Guilherme [Spalk] é o mais velho de todos [risos]. [Tem 34 anos.]
A Rita Magro foi distinguida na última Gala Michelin como a melhor jovem chef. Foi uma surpresa para si?
Não estava à espera, como não estava à espera da segunda estrela para o Antiqvvum. Aliás, eu pensava muito mais... Não vou dizer.
Pensava mais no Francisco Quintas?
[Risos] Era mais natural. A Rita ganhou e é só adiar mais um ano.
Adiar a estrela no Blind?
Eu sei porque é que não ganhámos a estrela.
Era para não ser mais uma estrela para o chef Vítor Matos?
Não, não. Ou até pode ser. Eu acho que acima de tudo foi... Nós tivemos a abertura, depois fechámos com a pandemia.
E mudou o conceito.
Mudámos o conceito duas ou três vezes. Andámos ali um bocado perdidos. Vamos, não vamos. Arranca, não arranca. E eles deixaram-nos um bocadinho de lado. É normal. Não nos vamos esquecer que eles vêm com o dinheiro deles, pagam a refeição, fazem a viagem, dormem. É claro que vão investir em restaurantes que têm mais condições de chegar rapidamente a isso. E há também aqui uma coisa engraçada, antigamente acontecia, e está a acontecer, os próprios chefs mandarem para o Guia: ‘Olha, vão a este restaurante…’
Normalmente os chefs quando chegam aos espaços, querem rapidamente apagar o passado. Infelizmente, alguns chefs tomam essa decisão. Eu não apago o passado.
Fazerem recomendações?
Acho que isso é o mais importante no futuro, os próprios chefs poderem aconselhar o Guia. É impossível visitar os restaurantes todos de forma célere e visitar três/quatro vezes para ver se mantêm a consistência. Por exemplo, este restaurante ao fim de duas/três semanas já fazia um serviço perfeito. As coisas não falhavam. Desde lá, evoluímos, como é normal nos projectos – ou evoluem, ou param e fecham. Infelizmente, acontece. Aqui, as coisas vão evoluindo naturalmente com as pessoas. Alterámos a equipa completa, foi tudo embora e renovámos com esta equipa.
Isso foi um percalço?
Acho que não. Há coisas que acontecem nas nossas vidas que achamos, inicialmente, que não são boas, mas quando vamos ver e a fazer uma análise daquilo que aconteceu… Para mim, foi positivo. Agora, não posso também ser mesquinho e falar mal do passado. Só posso falar do futuro e do chef que está cá.
Quando diz que foi positivo significa que o 2Monkeys está melhor?
Claro, eu sinto isso. Não vou falar mal do Francisco [Quintas]. O Francisco esteve cá, ganhou a estrela comigo, foi-se embora, tem o projecto dele, está a lutar pela vida. Cada um assume o papel que quer. Neste momento, tenho muito mais afinidade e muito mais ligação com o Guilherme [Spalk]. E nós fizemos uma coisa aqui que foi dar tempo à equipa para se adaptar. Não vieram para aqui [a querer] alterar menus. Normalmente os chefs quando chegam aos espaços, querem rapidamente apagar o passado. Infelizmente, alguns chefs tomam essa decisão. Eu não apago o passado. O passado é o passado. [O Guilherme] não chegou aqui para apagar o passado. Ele veio para dar o seu melhor e temos esta afinidade. Eu mando-o à merda se for preciso e ele manda-me à merda.
É preciso que exista essa abertura.
E há e às vezes não concordamos e isso também é bom. Não temos que concordar com tudo. Podemos demorar quatro/cinco meses a tomar uma decisão, mas o que decidimos é o que está no prato, não muda uma vírgula. Quando se dá liberdade criativa, às vezes as pessoas desfocam-se um bocado. Aqui não acontece isso. Fechamos o menu juntos, está fechado. É sempre igual, sempre da mesma forma. Claro que há dias em que as coisas não chegam iguais, mas tentamos sempre que seja o mais perfeito possível.
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Como é que chegou ao Guilherme?
O Guilherme já estava... Quando abrimos isto… Não vou contar a história toda.
Já estava sinalizado, é isso?
Já estava sinalizado para outro projecto, que não vou dizer qual. Entrou no momento certo, o que faz com que o 2Monkeys seja o que é hoje. Não fechámos nenhum dia. As equipas foram indo embora, fomos renovando as pessoas e neste momento temos uma estrutura muito mais forte.
Mas há-de ter sido um desafio?
Sim, ao início parece um desafio, mas agora olhando, acho que foi tudo tão natural... As pessoas podem achar que foi um bocado dramático, eu não achei nada dramático. É a evolução da vida, às vezes as pessoas querem coisas que nós não queremos. É deixá-los ir.
Diria que se fala de uma mudança dramática pelo timing. O restaurante era recente e a estrela tinha chegado há pouco tempo quando a equipa da cozinha se demitiu.
É, mas as pessoas já perceberam que afinal já havia entendimento quando as pessoas saíram, já havia coisas subentendidas e que nunca foram ditas, mas não interessa. Não vou me alongar nisso.
Voltando ao facto de se rodear de jovens. O que é que a juventude lhe traz? Uma nova visão da cozinha?
Não é só uma nova visão. Traz-me sobretudo experiência, vontade de superação. Eles têm mais força. Não vou para novo e cada vez me sinto mais cansado e se não são estes jovens a dar alento e a ajudar a crescer – porque eu também cresço com eles –, se calhar os projectos não eram o que são hoje. Uma coisa engraçada que eu consigo dizer é que, em tantos espaços diferentes, com donos diferentes, não há rivalidade.
Diz que está cansado, mas nem por isso tem abrandado…
Eu digo sempre que vou abrandar. É este ano, é este ano e depois acabo sempre por aceitar mais alguma coisa, mas eu creio que atingi a máxima capacidade. A semana só tem sete dias.
Não tira folgas?
Normalmente ao domingo, mas nem todos.
Entre tantos restaurantes, como é que divide os seus dias?
É quase como uma lotaria. Pego na grelha do mês, sei que tenho de fazer três dias aqui, dois ali, quatro ali, oito aqui, e começo a encaixar. O Tetris é conseguir encaixar as datas todas para que isto funcione, às vezes é difícil.
Mas a cozinha ainda lhe dá gozo?
Dá porque a cozinha é aquilo que eu sou. Acho que nasci com alguma coisa, este lado da sensibilidade, de poder tocar num produto e transformá-lo. Estou a falar bem de mim e não gosto. Já me chamaram muitos nomes… Já me chamaram de barroco por ter pratos com muita complexidade, com muitos elementos. Às vezes, dizem-me: ‘Não consigo perceber o que está no prato’. Eu entendo tudo. Já fazia cozinha muito complexa há 15 anos. Isto tem a ver com um dom que se tem ou não se tem. Eu não consigo pegar num cozinheiro que não goste de cozinha, que não tenha um dom e fazer dele um cozinheiro. Não existe. Estes jovens acharem que porque estão a ver o Masterchef vão ser chefs, eles caem ao fim de dois dias ou uma semana, desistem completamente. A imagem que se passa de um cozinheiro e daquilo que se passa numa cozinha é totalmente errada, tem de haver dedicação e gostar do que se faz. Se não gostarem, não funciona. E esta coisa de em pequenino sentir falta da comida, sentir falta de produtos que nunca tive…
Na Suíça?
Antes. Eu passei pela geração pé de chinelo. Só tinha uns chinelos para ir para a escola, eram umas sandálias de plástico. Não tinha sapatos, não tinha nada para calçar. Morava num palheiro. Chovia-me em cima. Dormíamos na palha. Até aos 9 anos, foi a minha vida, foi a minha infância. Nós bulhávamos por uns torresmos, nós bulhávamos por comer uma batata, um bocado de pão. A nossa alimentação era à base de sopa. Mas éramos tão felizes. Lembro-me dos carrinhos de rolamentos com quatro tábuas, nós a descer por ali abaixo. Não havia estradas, não havia nada nas aldeias. Às vezes penso, será que é possível alguém voltar a passar o que eu passei? Hoje não sei se conseguia.
Quis ser cozinheiro por não ter tido abundância na infância?
Porque senti falta da comida. Um dos meus filmes preferidos é o Ratatui. Quando vejo o Emílio a comer o queijo e aquelas explosões na cabeça, faz-me lembrar a minha infância. Foi na Suíça que comi o meu primeiro chocolate. Nunca tinha comido, nem sabia o que era. Chegámos à Suíça pequeninos, eu com 9 anos e o meu irmão com 8. Aliás, nem sabia o que era o sabor do açúcar, quanto mais. Não tínhamos. Açúcar era na Páscoa, no Natal, quando havia alguns bolos. Não tínhamos nada disso.

Quando vai para a escola de cozinha, via-se onde está hoje?
Acho que esta memória de infância, da falta de comida, e [o facto de] a minha mãe ser cozinheira na Suíça, ajudou na decisão. Antigamente dizia-se que só ia para a cozinha quem não tinha outra opção. É mentira. Eu tinha notas para seguir para a universidade e não quis. Não quis seguir o ensino superior porque aquilo que eu gostava era a cozinha. E foi um curso bastante difícil. Durante três anos, fui contra tudo e contra todos. O meu chef era racista, não gostava nada de portugueses. Dizia-me isso todos os dias: ‘Vais falhar, não vales nada’.
Trabalhava num ambiente violento e de bullying?
Andava num psiquiatra. Vomitava antes de ir para o trabalho, vomitava no restaurante, vomitava antes de entrar na cozinha com medo.
Mas não desistiu.
Não desisti. Subir as escadas e sentir o barulho da cozinha, sabendo que me ia sentar ao lado do chef, entrava em pânico…
Isso faz de si um chef melhor? Fá-lo saber o que não quer ser?
E o que não quero fazer aos outros. Quando vim da Suíça, passei um bocado por essa fase quando estive na Casa da Calçada. Preocupava-me só comigo e não com a equipa, mas rapidamente percebi que só nos leva a nos perdermos, a perdermos a equipa, a perdermos tudo. Uma pessoa também aprende com a vida, aprende com os erros.
2024 acabou ainda com uma entrada para o Best Chef Awards, que o colocou entre os melhores do mundo. 2025 conseguirá ser melhor?
Isso também foi uma surpresa. Eu não sabia. Se vai ser melhor? Não sei. Se for melhor é para as equipas que trabalham comigo. Acho que cada vez mais vou entrar em segundo plano. Não estou com aquela ideia de ser velhote e de me querer reformar… Temos de passar a pasta aos jovens que vão dar continuidade à gastronomia em Portugal, independentemente de fazerem cozinha portuguesa ou não. Se 2025 vai ser bom? Eu acho que sim.
Tem mais dois restaurantes para abrir, no Douro, na Quinta da Vacaria, também do Torel. Em que ponto estão?
Abrem nos primeiros meses do ano.
E continua a manter o desejo de ter um restaurante em Vila Real, onde vive?
Acho que não.
Mas tinha essa ambição.
E tenho um projecto, mas não vai avançar. Não tenho tempo. Para avançar em Vila Real, tinha que deixar outras coisas e não consigo fazer isso. Não esquecer que tenho esperança para dois restaurantes este ano, talvez três. Fizemos um grande ano e não falamos só do Oculto, falamos também do Blind e mais dois, mas não vou dizer nomes.
Mas dois restaurantes seus que tiveram um bom 2024?
Sim. O Vidago fez um bom ano e o Hool também. Agora, seria impensável quatro [estrelas].
Mas está pronto para isso [risos].
É sempre bom. Se forem cinco ou seis ou sete ou oito ou dez, que venham. Vá, também não vamos querer demasiadas porque depois quantas mais forem, mais complicam as coisas.
E depois é que não dá para parar.
Não. Para mim, seria importante que aparecessem mais restaurantes. E que haja finalmente um restaurante com três estrelas – um não, mais – para avançar. Parece que estamos todos bloqueados na segunda estrela. Enquanto isto não desbloquear não vai deixar espaço para outros restaurantes crescerem.
A terceira estrela para o Antiqvvm é uma possibilidade?
Acho que não. Embora, os meus chefs sonhem com isso. É deixar espaço... É preciso é acreditar nas equipas.