Tem pinta de estrela rock e, embora não se sinta assim, sabe que é adorado. Gosta de fazer as coisas de forma diferente, quebrar regras sem pisar ninguém, exceder-se para surpreender. Dabiz Muñoz é um nome sonante na cena gastronómica internacional, especialmente depois de ter conquistado em Setembro o título de melhor chef do mundo nos Best Chef Awards – uma definição impossível, garante. Para o espanhol, não há um cozinheiro que seja o melhor do mundo, há vários a percorrerem os seus caminhos.
Quando em Fevereiro se ouviu o nome de Noélia Jerónimo na Gala Michelin, a ovação fez-se sentir e a chef não escondeu a emoção. O restaurante com o seu nome foi recomendado pelo Guia, mas o reconhecimento dos seus pares existe há muito tempo. Há quem lhe chame a chef dos chefs, embora Noélia se veja mais como uma mãe. É o amor que a move, garante. Pelos seus e pelo Algarve. Só por isso aceitou o desafio de abrir um novo restaurante, desta vez em Olhão. Chama-se Marina com Noélia e fica no Real Marina Hotel & Spa, em plena Marina de Olhão. É no Noélia que a chef se mantém, mas é o seu receituário que no novo espaço.
Como é que um restaurante que está longe de qualquer centro mediático, e longe fisicamente, consegue ser conhecido por todos e consegue que as pessoas façam o desvio?
Não sei, talvez se deva um bocadinho à minha paixão pela cozinha, pelas pessoas e pelo produto com que trabalho. Eu trabalho com um produto muito bom, trabalho com produtos muito frescos. Sou uma apaixonada pela ria, pelo mar, pela serra. Eu digo isto muitas vezes: eu cozinho a minha paisagem. E o que é a minha paisagem? É a ria, é o mar e nas costas tenho a serra, não nos podemos esquecer da serra. Vocês hoje comeram xerém a pensar na serra algarvia.
E como é que é feito esse cruzamento?
Muitas horas de estudo, muito amor, uma grande vontade de aprender, de crescer, de ir para a frente, fazer diferente, fazer bem, fazer melhor, dia após dia. [Quero] ser melhor amanhã do que aquilo que sou hoje. Este é o intuito. E faço com que as pessoas gostem, com que as pessoas em cada colherada sintam prazer, sintam gosto, que estejam felizes de estar aqui. Ou seja, não é como comer um simples bife ou um peixe grelhado. É comer com prazer.
Como vê a evolução do Noélia ao longo destes anos?
Tem sido muito grande. Eu gostava de conseguir evoluir mais, mas não estou a conseguir.
Porquê?
Porque precisava de outro espaço meu. Em Olhão vou fazer assessoria e ainda não tenho pratos muito bem definidos porque o que vou ter lá, não vou ter aqui.
Então, falando já de Olhão, como é que os dois restaurantes se distinguem?
Este vai continuar a ser o mesmo de sempre: a ter a minha presença. Lá vai haver outra pessoa, vai haver o Bruno Sousa, que fazia parte do grupo Cafeína [no Porto] e que já trabalhou aqui comigo e que vai levar um bocadinho da minha essência. Ou seja, eu chego lá, preparo todos os pratos, preparo tudo e deixo-o a ele a supervisionar. Nunca esquecendo a ria, o mar e a serra.
Não haverá pratos iguais nos dois restaurantes?
Não. O que existe aqui nunca vai existir em Olhão. Claro que Noélia, Noélia é aqui. Esta é a casa-mãe, é a casa com a qual cresci, mas lá vai ser uma aposta nova. Vamos ver se tenho capacidade para tal. Vai ser muito, muito mar, muito Ria Formosa.
O que a cativou em Olhão? Imagino que tenha tido outros convites antes.
Muitos convites… Já tive projectos para ir para o Porto, para a Comporta, para Lisboa, para Braga, para muitos sítios, mas era longe. E aqui acabou por ser perto e acaba por fazer com que eu consiga dar asas à minha imaginação. Tenho outra capacidade e se calhar consigo fazer outras coisas.
Ou seja, será uma cozinha mais criativa?
Uma cozinha mais criativa, mas nunca perdendo a simplicidade da coisa, não estragando. [É preciso] cuidar do produto, cozinhar sem o alterar. Vocês hoje quando estavam a comer, sabiam o que é que estavam a comer. Sentiram muito mar, o último prato especialmente porque tinha as amêijoas, mas também tinha o presunto, que é aqui do Feito no Zambujal. Tento fazer o quê? Trabalhar com os produtos da época. Tanto aqui como em Olhão vai mudando, considerando aquilo que o mar me dá e aquilo que a terra me dá. Como disse, eu cozinho a minha paisagem. Se calhar é isso que as pessoas vêm à procura.
E também alguma diferença?
Alguma diferença, sim. Vocês saem saciados, não comeram muito, mas saem com prazer porque gostaram daquilo que comeram.
Mas olhando, por exemplo, para a carta daqui, acho que se percebe que há mais assinatura, se calhar, nas entradas e uma cozinha mais tradicional nos pratos principais...
É essa a base.
A parte da experimentação está nas entradas?
Está nos dois, mas aqui é mais difícil fazer cozinha de autor como prato principal porque quando tu fazes uma cozinha de autor, ou coisas muito diferentes, para teres que servir 80/90 pessoas, não tens a mesma capacidade. Em Olhão, se calhar já tenho mais empregados. Mas pronto, é tudo muito base da minha imaginação e também daquilo que eu quero passar cá para fora.
Vê-se a crescer em Cabanas?
Quero crescer aqui, quero mudar ainda este espaço, eu tenho espaço para abrir aqui ao lado... O meu sonho é eu estar no meio de tudo, haver uma ilha e todos os meus clientes ficarem sentados à volta.
Porque aqui está muito escondida, não é? Se ninguém for ali espreitar se calhar não a vêem?
O meu sonho de vida é todas as pessoas conseguirem ter contacto comigo. É estar a cozinhar e ter alguém a dizer: 'Olá Noélia, está tudo bem? Como é que estás?’
E aguentar o lodo [risos].
E dar três gritos quando for preciso porque isso faz parte e as pessoas não têm que se assustar com isso. Às vezes temos que chamar à razão. Eu costumo dizer isto: mãe e pai não servem só para dar o pão, servem também para chamar à razão. E muitas vezes isto acontece. Se eles querem crescer, têm que me saber ouvir. Aqueles que não sabem ouvir, provavelmente depois não conseguem crescer.
Estar no Algarve numa zona bastante sazonal faz com que o caminho seja mais difícil? Por exemplo, para manter equipas?
Em termos de equipa não é mais difícil porque eu consigo manter basicamente as pessoas de Inverno para o Verão. O que acontece é que muitas vezes as pessoas chegam ao Verão e vão-se embora. De Inverno é muito calmo, não fazem quase nada e depois de Verão aperta e eles pegam neles e vão-se embora. E eu pago acima da média, atenção.
Portanto, é um desafio.
E eu pago acima da média.
E este ano até teve o reconhecimento do Guia Michelin.
Foi muito bom. Não estava nada à espera. Para já porque isto é uma casa com muito movimento e eles vão para casas mais calminhas, com mais tempo para tudo. Não estava nada, nada à espera.
Foi uma das grandes ovações da noite.
Pois foi. Foi muito giro porque os espanhóis que estavam lá diziam: mas quem és tu? Eu já estou há 20 anos na rota das estrelas e essas coisas todas e nunca houve uma ovação assim tão grande ou há muito tempo que não havia uma ovação tão grande. Eu sou só a Noélia.
Mas essa ovação existe porque é reconhecida pelos pares.
Pelos meus colegas.
O que é acha que os seus colegas vêem em si?
Não sei, se calhar uma mãe.
Eu diria que é mais do que isso, não?
Uma mãe, uma amiga e percebem que eu tenho sido uma mulher que se tem dedicado. Tenho dado a minha vida por isto.
E ainda tem mais para dar.
Espero que sim e que as minhas pernas me deixem continuar a batalhar e a sonhar. Basicamente isto é criar sonhos. Eu dou de comer a muita gente a partir daqui – e estou a falar das pessoas que trabalham comigo, não estou a contar com os comensais. Tenho um mundo para lhes dar. Eles, enquanto aqui estão, são realmente meus filhos. Sou eu que tomo conta deles, sou eu que trato deles.
A mudança de nome no restaurante é também reflexo da evolução do seu percurso?
Talvez, mas o José continua comigo [risos]. O José está muitas vezes mais escondido e as pessoas têm o hábito de dizer 'vamos à Noélia' e nunca dizem 'vamos ao Jerónimo' porque antigamente isto era Jerónimo. Depois ficou Noélia e Jerónimo, ou Jerónimo e Noélia. E agora é só Noélia, mas é só por isso, para ser simplesmente Noélia.