Edmondo de Amicis (1846-1908) é recordado quase exclusivamente por Coração (Cuore), um livro para rapazes cuja pedagogia dos “bons sentimentos” envelheceu mal, mas que, quando surgiu, em 1886, teve extraordinário sucesso em Itália, cuja unificação recente a obra exaltava. Porém, De Amicis foi também um viajante muito activo e publicou meia dúzia de livros em que verteu impressões colhidas em Espanha, Londres, Holanda, Marrocos, Paris e Constantinopla.
A marcha europeia desenrola-se pé ante pé, ao ritmo de bons sapatos que ditam péssimas sentenças. A dos vivos, claro, porque um morto não precisa de solas nem tem dívidas por liquidar. Nos anos 30 do século XX ou em qualquer outra era. “A ironia vertiginosa é aqui uma modalidade de revelação da verdade”, dirá Éric Vuillard em entrevista sobre esse episódio macabro descrito por Walter Benjamin: a companhia austríaca do gás deixou de fornecer os lares dos seus clientes judeus por ficar a arder com a factura – homens e mulheres suicidavam-se para escaparem a um destino pior. Por outras palavras, um suicídio colectivo que foi na verdade um crime cometido por outrem.
É de retratos como este, e ainda de fotografias e filmes, memórias e arquivos do julgamento de Nuremberga que o vencedor do prémio Goncourt 2017, natural de Lyon, se socorre para compor A Ordem do Dia, uma pequena narrativa exemplarmente escrita que escrutina a véspera do abismo, ou as suas sementes, recuando a episódios que oscilam entre o sinistro e o caricato. Intromete-se nessa reunião em 20 de Fevereiro de 1933 quando “vinte e quatro sobretudos negros, castanhos ou conhaque”, vinte e quatro industriais alemães, vinte e quatro apelidos (Opel, Siemens, Krupp, etc., etc.) são recebidos pelo presidente do Reichtag Herman Göring e por Adolf Hitler e instados a financiar a campanha do partido nazi às eleições legislativas. Vuillard viaja aos contornos da anexação da Áustria pela Alemanha em 12 de Março de 1938, e a esse encontro entre Hitler e o chanceler austríaco Kurt von Schuschnigg, quando o mundo celebra o Carnaval. Lembra ainda que a guerra pertence à estante do espectáculo e que nada como um actor frustrado para maquinar uma boa cena, transportando o leitor para esse jantar oferecido pelo primeiro-ministro britânico Chamberlain a Joachim von Ribbentrop, em que o recém-promovido a ministro dos negócios estrangeiros alemão se demora para lá da boa educação para atrasar a resposta dos britânicos ao Anschluss.
Há outros pontos menos conhecidos mas nem por isso pouco entusiasmantes, como a ridícula panne dos panzers germânicos, supostamente infalíveis, na fronteira austríaca. Quase tão ridículo como o ámen das democracias europeias ao carrocel de barbárie. Porque afinal, se “a noiva consente, não é uma violação, como alguns pretenderam, é uma boda".
A Ordem do Dia ***** (cinco estrelas)
Éric Vuillard
Dom Quixote
144 pp
12,51€