Edmondo de Amicis (1846-1908) é recordado quase exclusivamente por Coração (Cuore), um livro para rapazes cuja pedagogia dos “bons sentimentos” envelheceu mal, mas que, quando surgiu, em 1886, teve extraordinário sucesso em Itália, cuja unificação recente a obra exaltava. Porém, De Amicis foi também um viajante muito activo e publicou meia dúzia de livros em que verteu impressões colhidas em Espanha, Londres, Holanda, Marrocos, Paris e Constantinopla.
“Afinal o que importa não é ser novo e galante / – ele há tanta maneira de compor uma estante”, avisava em “Pastelaria”. Mário Cesariny é, indubitavelmente, o surrealista português que mais profundamente cravou o seu nome na investida portuguesa pelo movimento, fruto de uma natural sintonia entre a sua personalidade e os pressupostos estéticos desta corrente. Uma reunião de livros com a poesia de Cesariny num único volume é uma dádiva editorial a saudar efusivamente.
A capacidade de recriar toda uma gramática semântica, articulando um refinado humor, a crítica a um quotidiano que o fez viver em permanente sobressalto e uma liberdade onírica traduzida em sugestivas evocações, foi conduzindo a sua poesia a um patamar de excelência que lhe é unanimemente reconhecido. A sua escrita (que provém de uma ética visceral) é herdeira de um lirismo anterior, associado à telúrica evidência de uma geração a quem coube questionar os destinos aprisionados de um país. Afinal, o Surrealismo eclode em Portugal em meados dos anos 30, com manifestações artísticas que persistem até à primeira metade dos anos 50. A realidade está sempre lá, transformada, acolhida em linguagem poética. “a velha que vende bananas/ o velho roxo de calor/ o rapaz que grita sacanas/ dêem-me um pouco de amor”; in “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”.
Há momentos em que a subversão (ou apropriação) visa a tradição poética antiga, actualizada com ironia: (“Ca morreu o meu amigo/ o que surrealista migo/ na escurana da manhã,/ ca morreu o meu amigo/ por todolo bem que fez consigo/ vou pôr outro Dolviran”; “Cantiga de amigo e de amado”).
Não raramente, Cesariny inscreve a geografia lisboeta nos seus escritos, nos títulos que citam a toponímia da cidade, mas também nas imagens recriadas: “No ângulo da Rua Augusta com a Rua Nova da Trindade estava um indivíduo coberto de trapos ensanguentados sentado no passeio” (in “Vida de Kandinsky”).
Num movimento de reacção ao 1º Modernismo, O Virgem Negra – Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais e estrangeiras por M. C. V. permanece um objecto acutilante e desafiador: “O Álvaro gosta muito de levar no cu/ O Alberto nem por isso/ O Ricardo dá-lhe mais gosto ir/ O Fernando emociona-se e não consegue acabar.”
São vários os momentos incontornáveis da literatura do século XX aqui alinhados, demonstrando como “entre nós e as palavras há metal fungente”. A antologia não é exaustiva – o organizador explica o que ficou de fora – mas inclui o capítulo “Outros Poemas”, com trabalhos retirados dos livros pelo próprio poeta. A ordem de alinhamento acabou por ser coincidente com a publicação anterior nesta editora, em detrimento de uma datação cronológica.
“Lembrança, louvor, home nagem: do Surrealismo, da Poesia, da Liberdade, do Desejo, do Amor, da Imaginação – cinco maneiras de dizer Mário Cesariny, cinco pessoas e um só Mário verdadeiro”, escreve Perfecto. Hoje e todos dias, acrescentamos, tomando por empréstimo as linhas inicias do poema “O Homem do Eclipse”: “Ora foi que certo dia/ o homem eclipsouse,/ – A data! Digam a data,/ a datazinha, faz favor!/ – Qual data! Foi por decreto/ que o homem se eclipsou,/ foi só manobra, espertice,/ um, dois, três, e pronto é noite,/ que nem a Lua apareça/ seja de que lado for!”
Poesia
***** (cinco estrelas)
Mário Cesariny
(org., prefácio e notas de Perfecto E. Cuadrado)
Assírio & Alvim
776 pp
44 €