Voz pausada, sorriso franco, simpatia indiscutível, muitas milhas percorridas, histórias acumuladas e memórias para reciclar. Tradutor, jornalista, ficcionista, em 2018 perfaz 70 anos de idade. Foi uma das figuras da edição deste ano das Correntes D’Escritas, festival onde escutámos o seu linguajar solto do Rio de Janeiro.
Os vossos livros estão cada vez mais próximos do cinema – na narrativa, na apresentação dos planos, no grafismo… concordam?
Filipe Melo: É muito bom que nos digas isso, porque os nossos livros surgiram como tentativas de fazer cinema, falhadas. Os dos Dog Mendonça como uma homenagem às histórias da nossa juventude; Os Vampiros, também nasceu de um argumento que andou às voltas… houve sempre impossibilidades de os fazer em cinema e tivemos de arranjar outras formas de contar a história. Este, nunca foi pensado para ser um filme. Gera-se essa contradição, quando queríamos fazer cinema era mais BD, quando pensamos em BD é mais cinema… E como não é um filme e não há banda sonora, tentamos sempre colocar música diegética, música de cena e em cena. Na primeira história há música no cabaret, na segunda passa na rádio…
A ficha técnica, com toda uma equipa (com um assistente de desenho e um colorista), também acentua essa faceta cinematográfica.
Juan Cavia: Eu creio que isso acontece porque, ao pensarmos em cinema, uma coisa que aprendemos é que não há forma de trabalhar sem ser em equipa. E é um modelo que se pode aplicar a muitos outros meios. Obviamente, com um custo: exige mais coordenação. Mas melhora o resultado final. É um desafio.
Se a segunda história é, notoriamente, um road movie, na primeira é impossível não pensarmos no Casablanca.
FM: Completamente certo, em ambas. Nós falámos muitas vezes como a nossa juventude foi povoada pelo imaginário americano dos anos 80. Quando fomos explorando isso, e à medida que fomos ficando mais velhos, percebemos que a própria imagem que temos da América, foi ficando mais negra, até ao ponto em que estamos, no fundo do poço. A nossa visão actual da América é o oposto daquilo que nos venderam nos anos 80. Principalmente a segunda história, seria sempre a visão de um europeu sobre esse contraste entre a América dos filmes e a verdadeira.
E a primeira história, com piscadelas de olho ao Casablanca?
FM: A Nadia Schilling, cujo bisavô é protagonista dessa história, sempre me disse: “Vamos até fim com isto e que a última imagem seja um tributo ao Casablanca”. Levei algum tempo a convencer o Juan…
São duas histórias, de alguma forma, sobre recomeços?
FM: (pausa) A primeira sim… a segunda, não… diria que, nessa, há uma redenção. É muito mais um ponto final do que umas reticências.
JC: No primeiro caso é claramente um recomeço; no segundo, fica muito mais ao critério de cada um. Poderia ser, sim, haver uma mudança a partir dessa redenção, mas não sabemos.
Essa é uma característica de ambas as histórias, cada leitor pode, e deve, continuá-las.
FM: A ideia é não responder a coisas que cada leitor pode responder a si próprio, aproveitarmos a experiência de vida de cada um. Não queremos retirar-lhe espaço ou empurrar as respostas pela goela abaixo. Juan, fala-nos um pouco sobre aquele elefante que surge quase no final da primeira história.
JC:Esse elemento foi ganhando importância ao longo do processo e, se não fosse a restrição do número de páginas, teria mais destaque, até. O Filipe insistiu para que mantivéssemos o elefante, mas sem forçar uma metáfora – o elefante é o Majowski, ou é a Alemanha… e está também associado à memória.
As duas histórias deste livro, uma centrada numa garrafa de champanhe, outra numa tarte, têm que ver com dignidade, pessoas que caem, mas caem de cabeça erguida. Ora, essa questão da dignidade, da honra dos valores, já estava presente no Dog Mendonça…
JC: Uma coisa que nos salientaram na apresentação do livro foi que nós demonstramos um carinho muito grande pelos nossos personagens.
FM: Acho que nas nossas histórias há um certo fascínio pelo underdog, o marginal… e isso está presente neste livro, também. De alguma maneira, o que nós temos tentado fazer é contar histórias que estejam relacionadas com as contradições das pessoas. Já fizemos coisas em que havia o Apocalipse, aranhas gigantes na Ponte 25 de Abril… problemas de super-heróis. Mas as boas histórias têm que ver com o ser humano. Quando entramos numa história e percebemos as emoções e as contradições das pessoas tiramos umas férias da nossa própria vida.
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