João Porfírio mostra as imagens de uma América desunida na véspera das últimas eleições presidenciais. O fotojornalista antecipa-nos a exposição "Estados Desunidos da América".
A mãe é queniana; o pai nasceu no Reino Unido, no seio de uma família judia com ascendência iraniana e do Leste europeu. Mas, ao crescer em Londres, Theo Gould nunca se sentiu “completamente judeu ou inteiramente negro”, apesar de se dirigem a ele dessa forma devido à tez escura. Na adolescência, quando visitou o país onde a mãe nasceu, teve contacto com outra realidade. Recorda-se de o apelidarem de kizungu, “algo como homem quase-branco” em língua suaíli. “Tenho pele escura e no Reino Unido sempre me consideraram um tipo negro, basicamente.” Ali, afinal, era quase branco. Ao mesmo tempo, em casa, sempre que estava com amigos, diziam-lhe ‘oh, tu não és negro’. Olhando para trás, o fotógrafo de 31 anos a viver em Lisboa reconhece que cresceu num “estranho acto de equilíbrio de integração.”
Ao ter passado por experiências sociais tão contraditórias, decidiu dedicar-se “à exploração da identidade racial e cultural, com especial foco em pessoas com ascendência de várias etnias”. Assim nasceu, em Setembro passado, Mixed, um projecto fotográfico que, através de retratos, pretende capturar a essência do que é ser fruto de uma mistura de etnias e de culturas e dar voz a essas experiências – muitas vezes toldadas por episódios ou sentimentos de segregação racial, racismo ou xenofobia.
“Comecei este projecto como uma forma de exploração pessoal e também porque, sempre que falava com outras pessoas, elas diziam-me que nunca as tinham questionado sobre estes assuntos.” O mundo aproxima-se cada vez mais da polarização, na sua opinião. A emergência dos populismos e dos partidos de extrema direita são, para o fotógrafo, um exemplo de como “todos estão obcecados com pureza racial e ultranacionalismos”. Este trabalho, defende, surge como uma reacção ao caminho que o mundo está a tomar. “As raças são uma construção social, mas a aparência estará sempre na base de como as pessoas são julgadas, pois é a primeira coisa que os outros notam.”
Comum a todos os fotografados são os relatos de alguma forma de discriminação – seja ela casual ou mais direccionada. “Toda a gente, até certo ponto, teve de sacrificar alguma parte de si. No meu caso, a minha herança judia.” Mas Theo deparou-se com situações bem mais complexas, como é o caso de Tatiana, luso-descendente nascida em Angola, que acabou por se mudar para Portugal devido à forma como era tratada naquele país devido ao tom de pele claro. “Em Angola há a percepção de que pessoas com a pele mais clara são mais privilegiadas. Como resultado, essas pessoas multiétnicas acabam por ser maltratadas”, explica o fotógrafo sobre este caso em particular.
Esteticamente, as imagens são apresentadas ligeiramente desfocadas ou com algum tipo de movimento. “A ideia é que isso ilustre a deslocação entre esses dois mundos diferentes”, justifica Gould. O fotógrafo recorre ao contraste, a sombras e a poses para esconder os rostos dos sujeitos. “Fotografo a preto e branco, pois vejo-o um pouco como uma metáfora para a vida. A imagem não é de facto preta e branca. O branco não é uma cor e o preto também não o é. Tudo é cinzento, por isso o mundo nunca pode ser considerado preto nem branco.” Ao não se conseguir discernir a cor de pele dos retratados, não é possível teorizar sobre quais serão as suas origens. Esse é um dos objectivos do trabalho, fundamenta o artista. “Em última instância, são humanos. Tento apenas não inserir as pessoas em caixas.”
À medida que o mundo se torna cada vez mais globalizado, Theo acredita que as relações multiétnicas serão cada vez mais bem-aceites e normalizadas. A série de retratos do fotógrafo britânico, que em Fevereiro foi seleccionada para a fase final do concurso Sony World Photography Awards (os vencedores serão conhecidos a 15 de Abril), pretende facilitar o entendimento de que, “se as pessoas forem menos ignorantes, é possível gerar-se um diálogo”. E que se perceberem “que somos mais parecidos do que diferentes, haverá menos conflitos no mundo”. Fá-lo tocando em questões fracturantes, a partir de uma abordagem positiva em que tenta simplificar o que motiva tantas cisões.
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