João Porfírio mostra as imagens de uma América desunida na véspera das últimas eleições presidenciais. O fotojornalista antecipa-nos a exposição "Estados Desunidos da América".
A noite de 3 de Novembro foi passada numa casa pró-Trump em Wilkes-Barre, Pensilvânia, estado decisivo para o futuro político do país. Depois de percorrer mais de 2600 quilómetros em 16 dias, durante a recta final da campanha para as presidenciais norte-americanas, João Porfírio, fotojornalista do Observador, recorda essa noite eleitoral como “uma experiência sociológica incrível” para entender o contexto político e a forte polarização que o país atravessa. Eram 13 amigos – 11 a favor de Donald Trump e apenas dois apoiantes de Joe Biden. “Todos eles tinham argumentos válidos tanto para uma candidatura como para a outra.” Antes disso, na companhia do ex-jornalista João de Almeida Dias, visitou uma Nova Iorque desolada pela pandemia; estiveram em Filadélfia nas noites de confrontos e de pilhagens que se seguiram à morte do afro-americano Walter Wallace Jr; retrataram como é a vida numa cidade dependente de uma fábrica, entretanto encerrada, que alimentava a economia local; e cruzaram-se com a dura realidade da crise dos opióides no país. O resultado dessa viagem a uma América em ruínas, publicado antes numa série de reportagens no Observador, pode agora ser visitado na exposição “Estados Desunidos da América”, no Núcleo Central do Taguspark, em Oeiras, até 14 de Maio.
Os Estados Unidos são um país a dois tempos. “Nova Iorque parecia um país dentro de um país, uma bolha”, explica o fotojornalista de 26 anos. Apelidada de “a cidade que nunca dorme”, à altura as suas ruas mostravam exactamente o oposto. “Vimos uma cidade praticamente deserta a partir das 21.00. Para mim, que nunca tinha ido a Nova Iorque, foi um choque. Era uma cidade que ia contra aquela frase feita do sonho americano”, relembra. Por entre os arranha-céus de Manhattan, pelos subúrbios de Staten Island ou em Queens, falaram com uma das primeiras pessoas infectadas na cidade. “Uma mulher de 30 anos que foi das primeiras pessoas diagnosticadas com covid-19 nos Estados Unidos. A cada dia que acordávamos as notícias diziam que era o pior de sempre, com o maior número de mortos, de casos. Isso pôs uma tensão grande no trabalho que estávamos a fazer.” E se na cidade mais afectada pela pandemia a política parecia passar ao lado dos seus milhões de habitantes, assim que deixaram Nova Iorque a realidade mudou. “Quando se vai para o interior da América, quando se fala com pessoas que dependem de uma fábrica de automóveis aberta, quando se fala com um agricultor, quando se entra no coração da América, percebe-se o quão a política é importante para aquela gente”.
Em Youngstown, Ohio, ouviram os trabalhadores de uma fábrica da General Motors encerrada que era o bastião da economia local. “Era desolador ver a quantidade de placas a dizer ‘vende-se’ agrafadas às casas. Acompanhámos um homem que estava a dias de vender a sua e outro que comprou uma autocaravana por não ter [dinheiro] para uma casa”, enumera o fotojornalista. Aí, encontraram dois lados – o dos empresários que ganharam com o encerramento, que receberam indemnizações, e o lado de quem perdeu tudo; em Clarksburg, na Virgínia Ocidental, depararam-se com uma cidade “completamente devoluta e cinzenta”, mergulhada num declínio acelerado pelo desaparecimento das indústrias do carvão e do vidro que antes a moviam. Agora, é a cidade no estado que regista mais mortes por overdose. A epidemia dos opióides é outro “vírus” que por ali circula e deixa um rasto de morte. “Fomos lá porque o combate a esta crise era uma das bandeiras de Donald Trump quando venceu as eleições. Prometeu diminuir drasticamente as mortes por overdose, mas não conseguiu. Pelo contrário, as mortes e o consumo aumentaram”, constata.
Republicanos desiludidos com Trump encontraram “muito poucos”. “As pessoas faziam referência à pandemia como sendo o grande fracasso de Donald Trump.” O país “tornou-se um reality show”, defende. “Tínhamos todos os dias Donald Trump nas notícias. Com Biden não há notícias todos os dias, nem telejornais todos os dias a falar dos Estados Unidos. E isto não é necessariamente mau”, reconhece o fotojornalista. Mas o país ainda tem muitas feridas por sarar. Uma delas é o racismo sistémico, a relação com a comunidade afro-americana e a violência policial desmedida que resulta em mortes que incendeiam cidades. Foi isso que aconteceu em Filadélfia por altura da morte de Walter Wallace Jr às mãos da polícia. “Havia avenidas inteiras com lojas a serem destruídas e incendiadas. Roubavam desde papel higiénico a televisões. Essa foi das situações que mais me pôs à prova”, reconhece Porfírio.
A nível político, o momento mais marcante foi o comício de Trump na Pensilvânia, o maior de toda a campanha. “Enquanto jornalista não podia ficar alheio a ter diante de mim um Presidente dos Estados Unidos a fazer uma campanha que provavelmente perderia e que dizia que ia ganhar, um dos presidentes mais controversos e um dos poucos que não seria reeleito para um segundo mandato”, aponta. Os milhares de pessoas ali reunidas e toda a coreografia de chegada do Presidente no helicóptero fazem parte do espectáculo, reconhece o fotojornalista. Joe Biden é agora o novo Presidente, que dentro de um mês cumpre 100 dias no poder – é tido como um marco que reflecte o que o mandato será. Mas a América continua a ser um país em chamas. Nas duas semanas passadas neste país para o qual o mundo sempre olhou de baixo para cima, ficaram a descoberto alguns dos problemas que fazem dos Estados Unidos um país por cumprir.
Taguspark, Núcleo Central, 100 (Oeiras). 19 Mar-14 Maio. Seg-Sáb 09.00-19.00. Entrada livre.
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