Edmondo de Amicis (1846-1908) é recordado quase exclusivamente por Coração (Cuore), um livro para rapazes cuja pedagogia dos “bons sentimentos” envelheceu mal, mas que, quando surgiu, em 1886, teve extraordinário sucesso em Itália, cuja unificação recente a obra exaltava. Porém, De Amicis foi também um viajante muito activo e publicou meia dúzia de livros em que verteu impressões colhidas em Espanha, Londres, Holanda, Marrocos, Paris e Constantinopla.
No seu livro O que se vê da Última Fila, Neil Gaiman fala sobre o carácter obsessivo que rodeou a preparação e elaboração deste livro de Alan Moore. Quando o lemos, confirmamo-lo imediatamente, tal é a dimensão da informação, a intensidade dos ambientes (ampliada pelo cruzamentos entre temas), a diversidade de referências, a escuridão permanente que sobrevoa a narrativa e a existência das personagens.
Explorando uma das teses nascidas do mistério nunca desmontado que foi a figura e as motivações de Jack, The Ripper [O Estripador] Moore navega em águas familiares e acolhe nesta obra monumental algumas das suas linhas de força. Bom, mas vamos por partes, como poderia ter dito o próprio assassino.
Se o cenário vitoriano serve de pano de fundo, o esoterismo e a simbologia desempenham um papel fundamental na história. A Maçonaria (“ninguém irá ajudar o filho da viúva?”), a arquitectura (reforçando toda a simbologia da sua evolução e regras estruturais), o receio do desconhecido, as nunca completamente reveladas relações familiares, as grandes conspirações que alteraram a História, a tirania dos poderosos… tudo isto são linhas de força num livro denso que se movimenta entre o romance negro e um bem acolchoado revestimento histórico capazes de satisfazer o leitor mais exigente e espantar algum mais incauto.
William Gull ansiava na infância que a sua vida fosse o mar. Não foi. “Bem, se não posso trabalhar no oceano, deveria trabalhar em algo parecido. Algo que flui como um oceano. Algo com sal e velho”. Mais tarde, descobriremos nas palavras do então garoto a alusão ao sangue, elemento fulcral, unificador e transmissor.
A profusão de informação recolhida e tratada por Alan Moore cria uma teia de sentidos e uma sucessiva complexidade que nos permite olhar para a história na sua época ou como manifestação de um percurso superior, um inevitável devir histórico que desemboca na mais negra profundeza da alma humana. Há diversos momentos em que esse carácter de inevitabilidade está patente, como no passeio que Gull faz com Netley, o seu fiel cocheiro, enquanto lhe vai mostrando a geografia de Londres à luz de um misticismo intemporal e ancestral (onde alguns encontrarão ecos de um romance seu, A Voz do Fogo).
O único senão deste livro será o diminuto tamanho do corpo de letra (manuscrita, ainda por cima) que torna difícil ler algumas passagens a olho nu. A grandiosidade da obra talvez justificasse um formato maior, em álbum. Não seria mais uns euros no preço que afastaria os leitores, num livro que será, sempre, forçosamente destinado a um reduzido número de seguidores.
Moore mostra uma Londres negra e decadente, reflexo da própria alma humana, erguida sobre os alicerces dos mais ancestrais mitos, medos e vassalagens, como se cada ritual fosse a celebração da humanidade. Com os sacrifícios ao centro.
Este trabalho monumental foi originalmente publicado em dez fascículos, durante dez anos (1989-1999, ano em que conheceu a primeira edição reunida). A intensidade da narrativa é sublinhada pelo traço de Campbell (atente- -se nas cenas de meticulosa mutilação, num registo quase cinematográfico), tirando partida da sujidade do traço para acentuar os ambientes claustrofóbicos e decadentes em que os crimes se passam.
“Uma grande obra deve ter muitos lados dos quais a poderemos apreciar. Pense nas lendas clássicas com as suas camadas de significação”, diz Gull. Mas poderia bem ser o próprio Alan Moore.