Ravens & Chimes
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Dez pérolas secretas da música pop: volume 1

Quando se tentam eleger “as melhores músicas pop de sempre”, as escolhas centram-se nos grandes êxitos dos nomes consagrados, mas não faltam canções tão boas ou melhores criadas por músicos obscuros

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O prólogo ao livro de poemas Os conjurados (1985), a derradeira obra de Jorge Luís Borges, é tão precioso e iluminador como o melhor dos seus poemas. Escreve Borges, do alto da infinita sabedoria dos seus 86 anos: “Com o correr dos anos, observei que a beleza, tal como a felicidade, é frequente. Não se passa um dia em que não estejamos, um instante, no paraíso. Não há poeta, por medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor verso da literatura, mas também os mais infelizes. A beleza não é privilégio de uns quantos nomes ilustres”.

Seguem-se dez comprovativos, não de como mesmo poetas medíocres são capazes de magníficos versos, mas de que existem criadores talentosos a viver longe dos holofotes, porque, pura e simplesmente, não existe uma relação entre talento e reconhecimento. São 10 músicas pop que poucos conhecem, mas todos deviam conhecer. 

Dez pérolas secretas da canção pop: volume 1

“Division Street”, dos Ravens & Chimes

Os Ravens & Chimes são (ou eram) de Nova Iorque, formaram-se em 2005, têm dois álbuns (ambos imaculados), Reichenbach Falls (2007) e Holiday Life (2012), e “Division Street” é a faixa de abertura do segundo. A banda não editou nada nos últimos cinco anos e não tem concertos anunciados no seu website, o que provavelmente significa que se dissolveu, sem nunca ter conquistado reconhecimento. Um destino que se diria prefigurado em “Division Street”, uma canção que sob melodias de uma suave melancolia, uma voz magoada mas contida e arranjos cuidados, oculta um negrume inquietante. A letra fala de alguém que constata ter-se tornado um estranho no lugar onde sempre viveu: “Nobody sees me, nobody knows me”. As luzes esmorecem, a chuva não pára, as lojas vão encerrando, e quando o protagonista pergunta o que se passa, ninguém lhe responde; só se ouve a chuva que cai incessantemente, enquanto a escuridão desce “e cobre tudo aquilo que nós fomos/ E apropria-se do meu nome/ Mas talvez, afinal, eu nunca tenha estado aqui”.

“Same Suburb, Different Park”, dos Firekites

Os Firekites vivem nos antípodas de Nova Iorque – em Newcastle, New South Wales, Austrália – mas a sua delicadeza e melancolia não andam longe dos Ravens & Chimes. A banda tem dois discos, The Bowery (2008) e Closing Forever Sky (2014), e “Same Suburb, Different Park” provém do primeiro. Como em “Division Street”, também em “Same Suburb, Different Park” a superfície serena e doce oculta uma visão sombria do mundo e do destino “She didn’t know how fortune swings/ The price you pay when disaster sings”.

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“Young”, dos The Paper Kites

Mantemo-nos na Nova Gales do Sul – agora em Melbourne – e no reino dos papagaios de papel. The Paper Kites formaram-se em 2010 e editaram dois EPs, Woodland (2011) e Young North (2012), e os álbuns States (2013), que inclui “Young”, e Twelvefour (2015), que nalgumas faixas troca a folk-pop em filigrana por um som mais cheio, eléctrico e “produzido” e mais próximo da pop mainstream (mas sempre com magníficas melodias). “Young”, que se interroga sobre o mistérios e dores do crescimento, não anda longe da estética dos Firekites, apenas tem realçada a componente onírica, que é pedida pelo refrão: “And they wake up, and they go out/ Head in a cloud”. O conceito do vídeo é simples e brilhante e envolveu 350 pessoas.

“Forever”, dos Ykiki Beat

Os miúdos dos Ykiki Beat, uma banda formada em Tóquio em 2012, são tão novos que quando nasceram a pop britânica da década de 1980 já era uma recordação remota, mas é provável que tenham passado boa parte dos seus escassos anos a ouvir atentamente a colecção de discos dos pais. E tão devotamente o fizeram que “Forever” iguala os seus melhores modelos. Têm a seu favor o facto de o seu frontman, Nobuki Akiyama, cantar num inglês muito convincente, o que é invulgar nas bandas japonesas, cuja pronúncia da língua de Shakespeare costuma rondar a ininteligibilidade. Akiyama não só se aplicou a estudar a pronúncia das bandas britânicas – The Smiths e Belle & Sebastian estão entre as favoritas – como se diz inspirado por poetas vitorianos como Keats e Wordsworth. Apesar de o álbum de estreia da banda, When the World Is Wide (2015), ser escorreito, não contém nada tão perfeito e sedutor como “Forever”. O mesmo pode dizer-se dos DYGL (que é suposto pronunciar-se como Day-Glo), um projecto paralelo dos Ykiki Beat, também muito “UK anos 80”, mas mais áspero e inclinado para o garage rock.

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“These White Lights Will Bend to Make Blue”, das Azure Ray

O duo Azure Ray – Maria Taylor e Orenda Fink – existe desde 2001 (com um interregno entre 2004 e 2008), mas nunca logrou ganhar visibilidade, apesar das suas qualidades e da amizade com Conor Oberst (Taylor e Fink participam nalguns discos dos Bright Eyes, a banda principal de Oberst). “These White Lights Will Bend to Make Blue” faz parte do terceiro álbum, Hold On Love (2003) e é das canções mais doces, tristes e dolentes jamais compostas.

“Tobira”, dos Uchu Conbini

Os Uchu Conbini foram um milagre que teve lugar em Kyoto entre 2012 e 2015 e deixou como testemunho apenas dois mini-álbuns. É no primeiro deles, Feel the Dyeing Note (2013), que pode encontrar-se “Tobira”, um sonho pop que anula a gravidade e o tempo durante 2’22’’. E o sonho torna-se ainda mais belo e imponderável se, como no vídeo abaixo, for ouvido imediatamente após os efervescentes 2’06’’ de “8 Films”, uma complexa equação math rock que confirma que o binómio de Newton não só pode ser tão belo quanto a Vénus de Milo como as duas coisas não são assim tão diferentes.

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“The Night Starts Here”, dos Stars

Os canadianos Stars existem desde 2000, têm oito álbuns de originais, repletos de canções “orelhudas”, algumas das quais têm surgido na banda sonora de séries televisivas americanas, mas nunca estiveram perto de ascender ao estatuto de estrelas. “The Night Starts Here” provém do quarto álbum, In Our Bedroom After the War (2007), e, como usual na banda, vive do arguto jogo entre as vozes masculina (Torquill Campbell) e feminina (Amy Milan, que também colabora com os mais experimentais Broken Social Scene), do groove bem marcado e dançável e dos arranjos densos, com predominância de teclados e electrónica. No centro de “The Night Starts Here” (e de quase todas as canções dos Stars) está o conceito de amor como guerra, cuja tradição remonta a Claudio Monteverdi e aos Madrigali Guerrieri e Amorosi, de 1638. Hoje há moogs e Fenders em vez de harpas e alaúdes, mas a natureza humana não mudou muito em quatro séculos.

“Calm”, dos Maritime

Os Maritime nasceram em 2003, a partir de elementos resultantes da desagregação de The Promise Ring (o vocalista e guitarrista Davey von Bohlen e o baterista Dan Didier) e The Dismemberment Plan (o baixista Eric Axelson). No novo projecto, descartaram os elementos de aspereza e acidez das bandas anteriores e enveredaram por uma pop distendida, melódica e com letras de um surrealismo zombeteiro. Pode dizer-se que todas as peças usadas na construção de “Calm” (do segundo álbum We, the Vehicles, de 2006) já foram usadas mil vezes na pop, mas a sua combinação resulta numa canção simples, perfeita e inesquecível. O que é mais admirável é que as restantes dez canções do álbum não lhe são inferiores.

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“Goodbye to Everything”, dos Tradlad

Os Tradlad, que têm base em Tóquio e nasceram em 2013, têm personalidade indefinida, e tanto cultivam uma power pop de alta energia, próxima do emo (“Dreaming Technique” é a mais conseguida nessa veia), como têm canções serenas e rendilhadas. “Goodbye to Everything”, do segundo mini-álbum da banda, Bridges (2017), faz parte das segundas: a estrofe é serena e fluida, embalada de forma gentil mas inexorável pela malha repetitiva da guitarra eléctrica, o refrão ergue-se até à alta atmosfera e o solo de guitarra leva a canção até às estrelas.

Se não fosse obra de uma entre mil bandas semi-anónimas de miúdos japoneses que lutam por arranjar concertos nos clubes de Shibuya, poderia estar destinada à imortalidade.

“3 Kids Home”, dos Velveteen

A 1 de Abril de 2008, foi disponibilizada na internet uma cópia pirata do muito aguardado Narrow Stairs, o sexto álbum dos Death Cab For Cutie, cujo lançamento estava anunciado para Maio. Os fãs dos Death Cab For Cutie apressaram-se a fazer o download, com escassos problemas de consciência, e a comentar os méritos e deméritos em relação aos outros discos da banda americana. Porém, ao fim de algum tempo soube-se que aquelas canções provinham na verdade de Home Waters, um disco lançado no ano anterior pelos Velveteen, um quarteto de Frankfurt-am-Main. Fora uma partida de 1 de Abril concebida por um blogger e o equívoco dos fãs dos Death Cab For Cutie era compreensível: a voz e as linhas vocais de Carsten Schrauff são muito parecidas às de Ben Gibbard (sobretudo em “Plastic Cups”) e a arquitectura das músicas também (embora os Velveteen exibam, pontualmente, um pendor mais shoegaze).

Mas o que mais importa realçar é que, no que respeita à qualidade das canções, Home Waters não faria má figura na discografia dos Death Cab For Cutie. Claro que a ordem do mundo não foi abalada por mais esta demonstração de que “a beleza não é privilégio de uns quantos nomes ilustres”: os Death Cab For Cutie continuaram a fazer parte da I Divisão da indie pop e os Velveteen continuaram a ser uma obscura banda que publica os seus discos em edições de autor.

Playlist perfeita

  • Música
  • Jazz
The Rite of Trio: André Bastos Silva (guitarra), Filipe Louro (contrabaixo) e Pedro Melo Alves (bateria) estrearam-se em disco com Getting All the Evil of the Piston Collar! (2015, Carimbo Porta-Jazz). Culturgest, quinta-feira 2 de Março, 21.30, 6€.   Rodrigo Amado Quartet: O saxofonista lidera um grupo de improvisadores internacionais de primeiro plano, com Joe McPhee (sax e trompete), Kent Kessler (contrabaixo) e Chris Corsano. O quarteto pode ser ouvido em This Is Our Language (2015, Not Two). CCB, sábado 4 de Março, 21.00, 10-12€.  
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  • Música
  • Jazz
Em 1961, o guitarrista Charlie Byrd fez parte de uma embaixada cultural que foi ao Brasil mostrar o jazz norte-americano e ficou fascinado com a bossa nova, um género então ainda com poucos anos de vida – Chega de Saudade, o álbum de estreia de João Gilberto, fora editado apenas dois anos antes. De regresso aos EUA, mostrou os discos de bossa nova que comprara no Brasil ao saxofonista Stan Getz, que também ficou cativado e convenceu o produtor Creed Taylor, da Verve, a registar um disco. Taylor não se arrependeria da aposta, pois o disco, Jazz Samba, editado em 1962, trepou até ao primeiro lugar do top. Não era frequente que o jazz figurasse nos lugares cimeiros das vendas e logo vários outros jazzmen se apressaram a explorar o filão, por iniciativa própria ou empurrados pelas editoras. Oportunismos à parte, a verdade é que o jazz – e em particular o jazz mais cool – e a bossa nova tinham afinidades e o seu conúbio gerou frutos deliciosos. A partir de meados da década, o interesse do público declinou e o jazz tomou outro rumo. Em décadas mais recentes o namoro entre jazz e bossa nova seria retomado, mas agora na área do jazz vocal, embora com menos felicidade: o “jazz samba” cultivado pelas cantoras de hoje não passa de um smooth jazz com discretos condimentos tropicais. 
  • Música
  • Rock e indie
A Austrália, uma ilha maioritariamente ocupada por desertos escaldantes, parece ser, tal como a Islândia, uma ilha maioritariamente ocupada por desertos glaciais, solo fértil para o talento musical. Passemos por cima de Crowded House, INXS, AC/DC, Men At Work, Midnight Oil, Kylie Minogue e Natalie Imbruglia, por serem sobejamente conhecidos e dispensarem publicidade adicional, e também por cima de The Birthday Party, Nick Cave, Dead Can Dance e SPK, por a sua área não ser a pop, e concentremo-nos no indie pop. Na falta de uma investigação científica que revele que viver de cabeça para baixo favorece a criação de canções perfeitas, maravilhemo-nos com 10 discos de 10 bandas que vale a pena conhecer entre a rica e pouco conhecida produção do Down Under, que é como o mundo anglo-saxónico costuma designar a Austrália e a Nova Zelândia.
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