Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma obra que se recusa a perder a relevância e inventividade.
Os Cave Story são um bando à parte. Formados à margem das cenas de Lisboa e do eixo Porto-Barcelos e liderados desde a primeira hora pelo polivalente músico, cantor e produtor Gonçalo Formiga (um de dois resistentes das primeiras Demos, de 2013, a par do baterista Ricardo Mendes), há dez anos que trilham o seu próprio caminho, com um som e uma série de influências que os separam dos seus pares. Os Pavement e The Fall são referências imediatas, também The Feelies e os Modern Lovers – cujo Jonathan Richman deu o nome ao seu primeiro single – ou, noutro contínuo, os Flipper, os Texas Is The Reason, até os Cursive. As suas guitarras ora estrebucham, ora serenam, tão depressa são angulosas como desenham círculos perfeitos; a secção rítmica segura as canções e abrilhanta as melodias; as letras são do mais inspirado e inspirador que neste país se escreve em inglês. E nunca soaram tão bem, tão seguros de si, como no mais recente álbum, Wide Wall, Tree Tall, que vão finalmente apresentar ao vivo, na cidade onde vivem, a 18 de Maio, no B.Leza.
Apesar de hoje morarem em Lisboa (ou pelo menos nas suas margens), e de serem uma parte importante do mosaico cultural da cidade, nem sempre foi assim. Antes de terem estabelecido ligações com bandas e projectos como os Sun Blossoms (cujo Alexandre Fernandes toca com Ricardo nos Hisou e Black Moss), os Veenho (atenção ao álbum de estreia, Lofizera, onde Gonçalo desempenha um papel ainda mais proeminente do que no EP VEEENHO, que produziu e tocou em 2017) ou April Marmara (moniker de Bia Diniz, a mais recente contratação do grupo) e editoras como a Spring Toast ou a Xita Records, eram um bando de putos das Caldas, a olharem de fora para dentro da metrópole. É o próprio Gonçalo que o reconhece, quando olha para trás. “Se nós fôssemos uma banda dos centros onde estas coisas acontecem não tínhamos a mesma experiência”, considera. “A ideia da cidade grande, que fisicamente até fica perto mas parece tão distante, está muito presente em nós, na nossa música. Por exemplo, o West…” Está a referir-se ao álbum de estreia de 2016, quando José Sousa, vulgo Zé Maldito, o interrompe: “O Oeste no geral, cultural”.
É dia de jogo e o Sporting Clube da Penha está cheio de simpatizantes do Benfica. As palavras de Zé e Gonçalo erguem-se por cima do ruído de fundo para refutar uma ideia avançada por um plutarco que tem o desplante de dizer que a música deles “podia ser feita em Portugal ou noutro lado qualquer”. Não é um insulto – antes pelo contrário – só que eles não concordam. De todo. “Repara que é uma coisa em que muitas vezes pensamos. Mas acho mesmo que isto só podia ser feito aqui”. No sentido em que os temas que cantam são um reflexo das suas experiências subjectivas e preocupações, no Portugal de 2013, de 2023. “E acredito que existe alguma coisa de Lisboa e das Caldas da Rainha naquilo que fazemos, apesar de estarmos a fazê-lo em inglês e numa linguagem [musical] diferente. Nem que seja por rejeição”, sugere o vocalista. É difícil, injusto, inútil, tentar sequer rebater esses argumentos quando a música que fazem soa tão honesta, tão vivida. Tão deles, mas também tão nossa.
Mas Gonçalo Formiga é um interlocutor generoso. Percebe de onde vimos, onde queremos chegar e leva-nos até lá. “Claro que muitas vezes tenho – não digo inveja, mas… Por exemplo, não sabendo nada sobre a experiência do Éme e a maneira como cresceu, sinto que as pessoas de Lisboa em geral, e da Cafetra em particular, tiveram qualquer coisa que as encaminhou [para a música]. Ou é o tio, ou o avô, ou alguém cantava, ou tinha uma colecção de discos. Alguma coisa. Já eu e o Ricardo e o [Pedro] Zina [ex-baixista e co-fundador da banda, também das Caldas da Rainha] crescemos com pais que não tinham colecções de discos. Nem tínhamos familiares que eram músicos fosse do género que fosse. Isso fez que tivéssemos de procurar um bocado a nossa cena. E a primeira coisa que fizemos foi descobrir os Pavement e The Fall, no secundário. Podíamos ter descoberto música de merda, mas tivemos sorte. E também tive sorte de haver uma loja de discos, achar aquilo engraçado, ir lá e o dono começar a falar comigo”, recorda.
“Ao mesmo tempo, estava a tomar interesse pelas cenas que estavam a acontecer em Lisboa. Pelo B Fachada. E através do B comecei a ouvir o Sérgio Godinho e assim. Contudo, por alguma razão, isso nunca…” Se reflectiu nos vossos discos, sugere-se. “Exacto. Acho que não.” Ainda bem que não. É isso que torna os Cave Story tão preciosos. O som distintivo e as referências meio ao lado são o que captura a nossa atenção e inspira o entusiasmo. É também isso que garante que, não obstante os membros que entraram e saíram ao longo destes anos, a banda se manteve fiel aos pergaminhos evocados e ao caminho apontado no single e EP inaugurais, lançados naquele 2014 que parece ao mesmo tempo tão distante e tão próximo do presente. E é possível traçar uma linha mais ou menos recta de Spider Tracks até Wide Wall, Tree Tall – apesar de pequenos desvios como o EP The Town, lançado no final de 2021 e que até começou por ser “uma cena a solo”, nas palavras do vocalista.
“Mas depois o Zé foi aparecendo lá [nas Caldas], deu umas ideias e percebemos que aquilo podia ser Cave Story. Como não lançávamos nada há muito tempo, mostrámos à Bia e ao [Ricardo] ‘Caguincha’ e eles acharam que estava bué fixe e devíamos lançar. Isso foi muito importante para o Wide Wall, Tree Tall, porque percebemos que Cave Story pode ser o que nós quisermos que seja”, explica o cantor. “E também trouxe uma coisa fixe, em termos de método de trabalho, que foi percebermos que podemos fazer as coisas separados, mostrar ao resto da banda e depois criar algo por cima disso, todos juntos. Isso foi fixe. Lá está, nós [os quatro] é que escolhemos o que pode ser Cave Story ou não”, adiciona Zé Maldito. “E atenção que, na nossa cabeça, existe uma noção muito específica do que é Cave Story. Não é fácil de explicar, porém chegou a acontecer o Gonçalo mandar uma demo, que era incrível, e nós dizermos que não era Cave Story. A esse nível, [o Ricardo] é o ouvido mais apurado para o que é Cave Story ou não”, continua José. “É verdade”, concorda Gonçalo. “Quando a Bia entrou na banda e se discutia se estava a tocar bem ou não, era o Ricardo que dizia que esta ou aquela parte não era bem assim”.
O que “não é Cave Story” não vai para o lixo, porém. Umas vezes é reduzido e aprimorado até “se tornar Cave Story”, outras vezes acaba nos projectos paralelos dos vários membros. Gonçalo dá um exemplo concreto: “Há uma música no disco de Veenho que sou eu que canto e que fiz. E é da altura da ‘Richman’.” Outro exemplo é a folk fantasmagórica de April Marmara, que há cerca de um mês editou o segundo álbum Still Life, pela nova editora Lay Down. Ou a música dos Hisou, o trio do baterista Ricardo e dos Alexandres Fernandes (Sun Blossoms) e Rendeiro (Alek Rein quando canta em inglês, Oriano em português), cujo primeiro EP foi – ou se calhar ainda está a ser – misturado por Gonçalo para sair o quanto antes. Zé Maldito também faz alguma música no computador, “numa onda mais ambiental” e tem algumas maquetes e composições no Soundcloud. Além disso, é um dos autores do programa Part Time Punks, da Radar, juntamente com o cabecilha dos Cave Story.
Wide Wall, Tree Tall não tem muito a ver com os projectos elencados. No entanto, não poderia existir sem eles. Porque, sem estas aventuras e escapadelas, dificilmente os Cave Story soariam tão seguros de si, de quem são e do lugar que ocupam na constelação indie portuguesa. Mas também – e sobretudo – porque as preocupações que assombram e inspiram estes hinos pós-punk são as deles; de quem precisa de se multiplicar até ao burnout e de fazer o que pode e o que não pode para ganhar a vida; de quem se dedica à música e às artes num país onde poucos artistas não são precários e mesmo esses poucos sabem ou pelo menos sentem que estão sempre e apenas a um passo em falso da miséria. De quem, mesmo assim, se recusa a cantar o que os outros querem e quando querem. Gabemos-lhe a coragem, exultemos Wide Wall, Tree Tall.
B.Leza (Lisboa). Qui 18. 22.00. 12€.