Cabrita e Stereossauro
DR Cabrita e Stereossauro
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Cachorro sem Dono. “Isto não é só um disco, é um trailer de um filme por fazer”

Cabrita e Stereossauro juntam-se para criar Cachorro sem Dono, um projecto de música com tiques de série policial. Tentámos perceber o enredo.

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Eles divertem-se. Isso fica mais ou menos claro no videoclipe do single de estreia e torna-se descaradamente evidente nesta conversa. Tiago Norte, o DJ e produtor que assina como Stereossauro, e João Cabrita, o músico que com o tempo dispensou o nome próprio, reuniram-se para formar Cachorro sem Dono, projecto nascido na casota do confinamento e que agora se mete à estrada para vadiar sem trela.

Cachorro Sem Dono apresenta-se como um projecto narrativo. Dito de outra forma, é música instrumental com um enredo, em que cada tema é uma espécie de banda sonora para um episódio diferente. No centro desta trama estão Roy Vides e Niniko Salvaca, dois detectives privados que aceitam casos bizarros para irem mantendo a conta do bar. São personagens com um passado pouco claro e a informação sobre os dois não abunda. Sabemos que têm pouca sorte, que sofrem ambos de défice de atenção, que partilham uma estranha fixação por pássaros. E pouco mais.

Descanse quem já ache tudo isto demasiado elaborado. Cachorro sem Dono é um projecto em construção, cheio de vontade de ser muita coisa sem que nada esteja fechado à partida, aberto ao improviso e a alguma palhaçada. Mas no princípio de tudo está o encontro feliz entre dois criadores: Stereossauro, o DJ que selou a amizade entre o fado e o hip-hop no notável Bairro da Ponte (2019), e mais recentemente se aproximou à pop com Desghosts & Arrayolos (2021); e Cabrita, o saxofonista que ao longo de trinta anos deixou a sua assinatura em dezenas de projectos alheios até que em 2020 se estreou a solo, com o homónimo Cabrita. E ao centro está sempre a música, totalmente instrumental, cheia de influências de soul, funk e jazz, e é a partir dela que se vai construindo este imaginário de malandragem com cheiro a anos 70 e policiais série B.

O disco está disponível desde os primeiros dias de Abril e a estreia em palco faz-se esta sexta-feira, 22 de Abril, no MusicBox. Por enquanto, vai rodando o single de estreia, que serve também como trailer para o que se possa seguir. “Chika Pika” é o nome do tema que abre portas para o universo musical, mas também para o imaginário cinematográfico que se vai construindo em redor. No videoclipe, acompanhamos Vides e Salvaca enquanto tentam resolver o mistério do desaparecimento da galinha premiada da senhora Odete. E eles divertem-se.

Este disco nasceu do confinamento.
Cabrita – Sim. Eu no meu primeiro disco a solo, que acabei antes da pandemia [Cabrita, 2020] tinha pensado em falar com o Stereo, porque tinha ficado muito bem impressionado com o Bairro da Ponte. Fiquei com vontade de trabalhar com ele, mas tive vergonha, e quando finalmente consegui o contacto dele já estava com o disco bastante cheio e fechei a loja. Entretanto, nos confinamentos comecei a trabalhar num novo disco. E a primeira coisa que pensei foi “deixa-me cá falar com este tipo, cruzei-me com ele na estrada o ano passado, pode ser que ele se lembre de mim.”
Stereossauro – Em resumo, eu sou o gajo que ficou fora do disco dele.
Cabrita – [riso] Exacto. Então falei com ele, pedi-lhe dois ou três beats, instrumentais para eu poder trabalhar por cima, para poder experimentar a escrita automática, que era uma coisa que queria muito experimentar, compor reagindo, sem pensar muito nas coisas. Ele mandou-me três sons e sobre dois deles construí logo os temas assim de rajada. O terceiro não consegui entrar na coisa…
Stereossauro – Pois, e eu gostei logo bué da cena. Assim que ele disse que tinha feito dois, foi toma lá mais dois ou três…

E o processo foi sempre esse?
Stereossauro – Foi sempre esse pingue-pongue. Havia coisas que não estavam acabadas que eu lhe mandava, ele dava os inputs… mas não houve nenhum tema em que andássemos ali muito às voltas. Se algum de nós não gostava, nem se pensava mais nisso, passávamos logo a outra ideia, não ficávamos ali a tentar um compromisso.
Cabrita – Até porque ele tinha para aí uns 500 beats que me mostrou [riso]. O difícil foi escolher. Mas estávamos sem nenhum compromisso de tempo…
Stereossauro – Eu estava no meio de outros projectos. Este ficou logo assumido que iria ser, pelo menos na sua maioria, uma coisa instrumental, e isso serviu-me também como escapatória, para não ter de escrever letras. E o meu método de trabalho antes da pandemia já era muito este, cada um no seu estúdio e trabalhar por email…

O Wetransfer faz parte da banda.
Cabrita – [riso] É mesmo isso.
Stereossauro – E mesmo no Zoom, há ali uma latência, mas dá para estar a mostrar alguns sons e a outra pessoa logo a dar algum input por cima. Isso já era um bocado o meu método natural. Portanto foi tudo fluido. Eu já conhecia o Cabrita, apesar de ele estar para aqui com esta conversa, já nos tínhamos cruzado, com o [Legendary] Tigerman e noutras cenas, e apesar de não termos falado muito nessas alturas, havia ali uma empatia. E isso acaba por ser sempre a coisa principal. Se não houver uma química boa, a coisa não pega.

Então e esta química tem quanto tempo?
Cabrita – Um ano e picos. Foi no segundo confinamento, no final de 2021…
Stereossauro – Não, 2020!
Cabrita – Tens razão. Já me perco…
Stereossauro – Os casamentos são assim...

Cachorro Sem Dono apresenta-se como um projecto narrativo.
Stereossauro – Uma espécie de banda sonora, sim…

Mas aqui é o contrário de uma banda sonora: primeiro surgiu a música, só depois o enredo.
Cabrita – Foi surgindo naturalmente, ganhando sentido…
Stereossauro – Sendo que em algumas músicas já havia um caminho estético. Não necessariamente um caminho para o disco, mas aquela coisa mais encostada ao groove e ao funk, com raízes nos seventies. E pareceu-me um caminho em que o saxofone ia encaixar bem.
Cabrita – Eu tentei incluir umas texturas mais jazzistas também. Aquela coisa mais a soprar ao ouvido, mais calminha. Já tinha feito muito rock n’roll no meu disco, então queria ir para uma coisa mais soul, mais jazz…
Stereossauro – E depois quando começas a ter um conjunto de músicas que te levam para um certo vibe, começas logo a discutir essa ideia. A pensar que isto podia ser uma banda sonora assim, sei lá…

…do Duarte & Companhia.
[riso]
Stereossauro – Isso mesmo! Ou do Zé Gato, ou dos Homens da Segurança.
Cabrita – Mas depois descambámos para o Duarte & Companhia, na parte do vídeo [riso].
Stereossauro – Nos Bons Malandros [Crónica dos Bons Malandros, Mário Zambujal] também há essa parte da comédia, dos comic reliefs. Pelo menos no filme isso passa muito bem. Nos filmes dos seventies, aliás, isso é uma constante. Pelo menos visto com os olhos de agora, há sempre coisas que parecem apalhaçadas.
Cabrita – Se calhar eram restrições de budget

E aqui não foi?
Cabrita – Não foi bem. Começou por ser “o que é que nós podemos fazer com este budget?”, claro… mas fazer videoclipes hoje em dia é um exercício de achar ovos de Colombo. Tens de achar um caminho qualquer de passares uma imagem ou uma ideia de uma maneira muito clara para o tempo que as pessoas têm disponível para estas coisas. E isso quase nunca passa por teres milhares de euros para gastar em orçamentos. Vídeos vistosos que não ficam na memória também há muitos. E acho que é muito mais fixe isto assim…
Stereossauro – E nós estávamos apontados para aquele tipo de imagem, handycam, estilo vídeos de skate dos anos 90. Não íamos estar a filmar com uma câmara de 8K e depois deteriorar a imagem para dar aquele aspecto de menor qualidade. Decidimos filmar já com uma handycam e ter o efeito de origem.
Cabrita – Pois, aquilo é feito em super VHS, não é?
Stereossauro – Acho que é uma Hi8. Mas pronto, uma câmara de 1992, 93, uma coisa dessas que ele [Richard F. Coelho] foi desenterrar no baú. [riso]
Cabrita – Teve de andar à procura de cassetes virgens para aquilo, foi muito engraçado.

Falávamos que as pessoas não têm muito tempo disponível para estas coisas. Mas ao mesmo tempo parece que os discos precisam cada vez mais de alguma coisa à volta – neste caso um projecto narrativo, um filme, uma história associada. Senão também ninguém lhes pega.
Stereossauro – Sim. E mais ainda quando falas de música instrumental. Apesar de, na teoria, poder parecer mais abrangente, porque comunica com qualquer pessoa, seja qual for a língua que fale, na prática o factor humano da voz continua a ser um elo de ligação muito forte com o público. Para transmitir uma ideia ou um conceito, a palavra é um veículo definitivo e imediato. Com a música instrumental é sempre mais difícil furar…
Cabrita – Vejo a coisa mais equivalente a ler um livro. Quando lês, constróis as imagens todas na tua cabeça. Com música instrumental, a imagética também és tu que a crias. Não é um conteúdo como a maior parte dos conteúdos de hoje são – pré-feitos e tu só tens de absorver. E pegando naquilo que estavas a falar há bocado, isto não é só um disco. É uma coisa de que eu gosto muito, e acho que o Stereo também, que é pegar no conjunto dos temas e fazer disso o início de outra coisa qualquer. O início de uma tour, de uma banda sonora, de uma narrativa qualquer.

Como, aliás, também já havia no Cabrita, o teu primeiro disco a solo.
Cabrita – Sim, exactamente. Gosto muito disso porque, de alguma forma, isto potencia encontros com outras pessoas…
Stereossauro – E tenho a certeza de que este disco se vai transformar muito ao vivo. Não vamos tocar as músicas exactamente iguais, vai haver ali muito espaço para improvisação. Sobretudo para o Cabrita soltar a franga no saxofone… [risos] Mesmo as músicas mais calmas, ao vivo a gente se calhar sobe-lhes um bocadinho o bpm [batidas por minuto] e coisas assim. Em vez de ser as baterias das caixas de ritmo, vamos ter o Pisko na bateria [Pisko Pica, nome do personagem do baterista Filipe Rocha], vai dar uma energia diferente.

Ao vivo, o Cachorro não tem dono mas tem banda.
Stereossauro – Sim, ao vivo é em matilha.
Cabrita – Temos o Filipe Rocha na bateria e o João Rato nos teclados e guitarras.
Stereossauro – E voltando à cena dos vídeos, foi muito aquela coisa de já que isto vai ser uma espécie de [banda sonora] imaginária, então o primeiro vídeo deveria ser um trailer do filme que não existe e ter uma voz off. E ter letras a andar para cima e para baixo do genérico. E depois foi tudo muito improvisado…

Isto é um trailer de um filme em construção.
Cabrita – A ideia era precisamente essa, criar um trailer.
Stereossauro – Isto, na verdade, também não é só um disco, é um trailer de um filme por fazer [riso].

Havia uma ideia de base, um enredo, e depois espaço para a palermice.
Cabrita – Isso mesmo.

Espaço para criar personagens que sofrem de défice de atenção e têm uma estranha fixação por pássaros, por exemplo.
Stereossauro – Exacto [riso]. Já nem sei de onde isso veio.
Cabrita – Havia dois temas com nomes de pássaros, então lembrei-me disso. Há um tema que foi feito em Leiria, estava eu lá numa residência artística, e o Stereo mandou-me um beat. Quando peguei naquilo e comecei a tocar por cima, os pássaros começaram a cantar muito. E fiz o tema todo de rajada com aquele som de fundo.
Stereossauro – Devias dar direitos de autor aos pássaros.

Falem-me então da matilha do Cachorro.
Stereossauro – Uma forma de incluir no projecto a banda que vai andar na estrada foi atribuir personagens a cada um. Até a nossa road manager entra no vídeo e é personagem.
Cabrita – Tudo muito improvisado, partindo de uma base de história que tínhamos na cabeça.
Stereossauro – Acho que isso se vai reflectir também nos concertos ao vivo. Essa mentalidade e essa abertura para o que possa surgir no momento. E depois é muita malta que já tem muito à-vontade uns com os outros. O baterista e o guitarrista já tocam com o Cabrita há muito tempo…
Cabrita – Sim, já há uma grande cumplicidade.
Stereossauro – Eu cheguei a tocar com eles o ano passado, foi tudo sem ensaios, freestyle, de improviso, apenas com trabalho de casa. Claro que eu tive de ouvir as músicas e escolher alguns samples para depois colocar a electrónica e algum scratch já na escala musical certa, para aquilo fazer tudo sentido…
Cabrita – E correu muito bem.

Há aqui outro tema chamado “Paredes”. É uma inspiração que te acompanha, Stereossauro, há pelo menos três discos.
Stereossauro – Sim… isso na verdade até foi o Cabrita que sugeriu o nome. E de facto tem guitarra portuguesa. O Paredes tem sido uma inspiração. Mas a guitarra portuguesa neste tema até é quase uma guitarra ritmo. Paredes também pode ser uma referência às paredes de graffiti…
Cabrita – Ou uma cena do filme em que o gajo vai a uma casa de fados e acaba tudo em pancadaria…
Stereossauro – Boa! Aponta essa.

Isto nasce no buraco da pandemia. Foi uma altura difícil mas produtiva?
Stereossauro – Em 2021 já foi melhor. Em 2020 foi um bocado um carrossel. Eu ao início achei brutal. Pensei “os cantores estão todos em casa…”

“Agora vou ter mais tempo para mim…”
Stereossauro – Exacto [riso] Ninguém pode argumentar que anda na estrada e que tem concertos. Portanto, pensei, isto vai ser malhar e produzir como se não houvesse amanhã, vou despachar dois álbuns num instante. Só que não.

O que é que não resultava?
Stereossauro – Se por um lado a música instrumental é bué terapêutica, e é possível estares a fazer, a compor, sem estar a pensar em nenhum conceito específico, escrever é outra coisa, se não tiveres com a cabeça no sítio…
Cabrita – É muito mais difícil.
Stereossauro – E aquela primeira altura da incerteza da pandemia… quando percebemos que afinal ia ser muito tempo, tanto tinha duas semanas em que fazia dois beats por dia, como estava duas semanas em que nem conseguia ligar o computador.

E para quem é instrumentista?
Cabrita – É a mesma coisa. Tocar saxofone não é o mesmo que andar de bicicleta, tens de estar sempre a exercitar, senão ficas sem músculos na boca. Para me exercitar fiz as Quarantine Sessions, que depois acabaram por sair como bónus do meu disco. Isso manteve-me entretido no primeiro confinamento. Depois tive um Verão mais composto do que esperava, com o Tigerman e os [Cais do Sodré] Funk Connection, já deu para limpar um bocado a cabeça. No segundo confinamento é que já me fui um bocado mais abaixo. Mas entretanto comecei a trabalhar com o Stereo…
Stereossauro – Eu tirei-te da fossa! [riso]
Cabrita – Ajudou-me, sim. Naquele cenário, começas a pensar se o que andas a fazer é essencial ou não é, se a cultura é essencial ou não, qual é o propósito de um gajo andar a fazer isto há tanto tempo… pões tudo em dúvida.

E chegaste a uma resposta?
Cabrita – Sim, claro! Claro que tudo isto é essencial, a cultura é essencial, o trabalho de quem cria importa. É isso que faz de nós humanos e é isso, também, que faz de um país alguma coisa mais do que apenas um lugar. Sem cultura não somos ninguém.
Stereossauro – Sem cultura tínhamos ficado todos maluquinhos no confinamento. Sem livros, sem música, sem filmes, matava-se tudo. Acho que isso foi a grande prova de que tudo isso é mesmo importante.
Cabrita – Mas também é fácil as pessoas esquecerem-se disso rapidamente quando voltam ao normal. Agora já passou, temos outros problemas. Mas acredito que ainda vamos viver um bom Verão.

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