Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma obra que se recusa a perder a relevância e inventividade.
Poucos dias antes do lançamento de Portuguesa, o telefone de Carminho toca. Do outro lado, está mais um jornalista – a fadista tem passado os últimos dias a falar com eles, connosco. Trocam-se cordialidades, liga-se o gravador e faz-se marcha atrás até Novembro de 2018. Há um registo novo para esmiuçar, mas seria errado falar dele sem retroceder pelo menos até 2018 e ao anterior Maria, um dos grandes discos de fado deste século. Afinal, o álbum que está prestes a editar é uma sequela e extrapolação do trabalho iniciado há cinco anos.
Durante o processo de criação de Maria, a artista interrogou-se sobre o que era, podia e tinha de ser o fado. Em busca destas respostas, foi-lhe retirando tudo – os instrumentos e ritmos exógenos que ao longo de décadas se foram alapando ao género, mas também as cordas e os acordes tradicionais – até que restaram apenas dois elementos: voz e verdade. “A Tecedeira”, o culminar deste exercício de subtracção e a faixa que abre o registo de 2018, é uma canção-monumento, fado em carne viva, sem truques nem enfeites; o primeiro de 12 temas que, sempre que se afastam dos cânones do género, acabam por reforçá-los.
As pequenas heresias de Maria – uma guitarra eléctrica aqui, uma lap steel ali – são mais e maiores em Portuguesa. Ainda assim, o novo disco nunca esquece nem trai as suas raízes. Como uma boa continuação, parte do mesmo sítio e explora ideias semelhantes, mas vai ainda mais longe. Confrontada com esta leitura, a cantora não esconde a alegria. “Fico feliz que estejas a ouvir aquilo que eu oiço. O exercício é o mesmo, só que agora trabalhei de maneira diferente”, detalha. “O anterior foi [um disco] bastante intuitivo. Este é mais racional – ou pelo menos mais organizado... Mas debruçam-se ambos sobre a prática do fado.”
Esta ideia de práxis fadista interessa-nos. Ela desenvolve-a. “Pratico o fado desde que nasci”, começa por dizer, antes de evocar a sua mãe, a também fadista Teresa Siqueira. “Mas uma coisa é estar a cantar sem saber de onde vem esta linguagem, simplesmente porque os nossos pais a cantam e a tocam. E outra coisa é começar a pensar sobre ela e sobre as razões por que gosto disto; pensar porque é que estou aqui e o que quero dizer com esta linguagem.” Foi isso que decidiu fazer em Maria, e que continua a investigar e a praticar passados estes anos, ainda que de forma mais calma e metódica. Apaziguada.
“O anterior foi um disco bastante intuitivo. Este é mais racional”
A nova maneira de estar e lidar com a música foi, em parte, possibilitada pela pandemia. Com o tempo a fluir de uma maneira estranha, e impedida de actuar ao vivo, dedicou-se “à pesquisa e composição de muitas das canções e de alguns dos fados que se ouvem neste disco.” Atreveu-se, pela primeira vez, a compor “fados tradicionais originais” e ao mesmo tempo pensou mais a fundo sobre o repertório que queria interpretar, sobre o que herdou de gerações anteriores e aquilo que quer legar para os intérpretes e autores vindouros.
“Tal como hoje ouvimos os fadistas a cantarem o ‘Fado Cravo’ ou a ‘Marcha do Marceneiro’, que na altura do próprio Marceneiro – que não foi assim há tantos anos – eram composições originais, espero que daqui a uns anos as gerações mais novas vão buscar um ‘Fado Sophia’ ou um ‘Fado Flores’ e coloquem lá os seus poemas. Como eu fiz quando era mais jovem”, assume. Como continua a fazer. “Porque o fado não é um exercício de memória. É uma língua viva que, seguindo determinadas regras e características, comunica para as gerações de hoje e para o futuro. É essa a sua mais-valia e aquilo que me fascina. O facto de ser sempre possível abordar temáticas novas, mas cantando fados os antigos.”
É o que acontece na primeira faixa de Portuguesa, “O Quarto”, que pega no “Fado Pajem” de Alfredo Marceneiro e lhe junta um poema da autoria da própria Carminho – que, além da produção, assina as letras ou as músicas de grande parte das canções. Colocar novas palavras num velho tema é uma das coisas que mais a fascina. “Porque é mais complicado, com uma matriz simples, fazer algo que é realmente especial, do que com uma grande banda e uma produção muito cuidada. O fado tem uma liberdade e uma dinâmica entre elementos da qual só quem se debruça sobre isso ou o pratica é que tem consciência.”
“O fado tem uma liberdade e uma dinâmica interna da qual poucos têm consciência”
De seguida, a fadista dá precisamente o exemplo de “O Quarto” e a forma como a sua composição se relaciona e diverge de “O Pajem” original. “O facto de começar por dizer ‘Neste quarto tão pequeno’ em vez de ‘Todas as noites um pajem’, como no fado de Marceneiro, muda tudo. Mesmo que a métrica seja a mesma, muda a atitude, muda a maneira de cantar e até a interpretação dos músicos. Está tudo encadeado”, detalha.
Claro que não são só o poema e a sua interpretação que influenciam os músicos – o contrário também acontece. Foi por isso que Carminho decidiu fechar-se no estúdio com os esboços das canções e a sua banda, onde além de homens do fado, como André Dias e Flávio César Cardoso, respectivamente na guitarra portuguesa e na viola, há músicos com outras escolas, como o guitarrista Pedro Geraldes, outrora dos Linda Martini, que se juntou ao combo durante a digressão de apresentação de Maria, ou o baixista Tiago Maia, que durante anos acompanhou Tiago Bettencourt em estúdio e ao vivo. Sem a energia destes quatro artistas, e também de João Pimenta Gomes, no teclado e sintetizadores modulares, e dos convidados André Santos e Rita Vian, o álbum seria radicalmente diferente.
A cantora dá um exemplo. “Convidei a Rita Vian para fazer um tema e ela apareceu com uma música que achava que não estava acabada, só tinha a primeira parte e um refrão. E eu disse que já estava feita, que era um breve interlúdio, mas não deixava de ser uma canção. Porque uma canção não é feita de minutos, é feita de palavras e sons”, considera. “Originalmente, havia um piano. Mas um dia chegámos ao estúdio e resolvemos fazer um arranjo de vozes e gravámos as duas frente a frente a canção inteira, sem nenhum tipo de interrupção.” Precisaram de fazer “uns quatro takes”, se bem se lembra Carminho, mas o resultado, intitulado “Simplesmente Ser”, é um dos momentos mais singulares do álbum.
“A Rita Vian é uma escritora muito talentosa. É um dos grandes talentos da sua geração”
“A Rita é uma escritora muito talentosa e usa as palavras de uma forma muito interessante. É um dos grandes talentos da sua geração”, considera a fadista. “Ela é a compositora da [“Simplesmente Ser”], mas está ali com uma atitude de humildade e de serviço à canção. Tanto que, se não leres os créditos, só no fim é que descobres que está ali outra voz. Parece só uma sobreposição vocal, e de repente percebes que há ali alguém que está a servir a canção aquele tempo todo e só se revela no fim. Isso diz muito sobre as qualidades extraordinárias do carácter dela e a forma como se conduziu esta canção.”
Vai ser curioso ver como esta canção é reproduzida ao vivo, sem Rita Vian. E que roupagens ganharão os restantes temas no palco. Depois da festa de lançamento e de um concerto privado, marcado para esta quinta-feira, 2, no Lux, o grande público vai poder ouvir as novas canções ao vivo pela primeira vez a partir das 19.00 de sexta-feira, 3. “Serão quarenta minutos de apresentação, na fachada dos Armazéns do Chiado. Não vai dar para cantar todas as faixas, mas uma grande parte”, assegura. “Acho que este disco é das pessoas, portanto, apresentá-lo gratuitamente, num lugar público, onde todos podem estar presentes e ouvir alguns destes fados é [para mim] um privilégio.”
Depois, parte em digressão pelo país – e pela Europa, mas isso não interessará tanto aos leitores. O primeiro concerto está marcado para este sábado, 4, no Teatro das Figuras farense. “Estou há muito tempo a construir a cenografia destes espectáculos, que vão arrancar em Faro, com um alinhamento que inclui todo o disco e alguns temas mais antigos.” Quais? Não diz, prefere não estragar a surpresa. E, no Porto e em Lisboa, ainda vamos ter de esperar muito para saber a resposta a esta pergunta. Os concertos nos coliseus das maiores cidades do país já estão marcados, mas são só em Novembro. Até lá, temos de nos contentar com com as gravações de estúdio. Ainda bem que tiveram uma boa produtora.