Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma obra que se recusa a perder a relevância e inventividade.
“Como é que estás a aguentar mais esta crise?” É a primeira pergunta, uma entrada a pés juntos. “Como todos estamos”, responde Luís Varatojo. Ou seja, mal. Por causa do aumento dos juros do empréstimo à habitação; dos preços pornográficos dos combustíveis; dos bens essenciais com margens de lucro obscenas; do capitalismo a funcionar. É por isso que um disco como Defesa Pessoal, o segundo desta Luta Livre, soa tão bem. Porque ao longo das suas dez canções nos sentimos representados. Estamos mal, repita-se. E ele não tem medo de dizer porquê.
Este homem nunca foi medroso. Desde a década de 1980 que deixa a sua marca no panorama musical português, indiferente ao que pensam dele, aparentemente guiado apenas por aquilo que parece interessar-lhe em cada momento. Seja o punk rock dos Peste & Sida ou o ska bonacheirão dos Despe e Siga; a renovação das músicas populares portuguesas com João Aguardela (Sitiados) na Linha da Frente e n’A Naifa ou o seu trabalho com os Fandango; e mais recentemente as canções de protesto desta Luta Livre. Ouvi-lo é ouvir a verdade. É escutar alguém que não está aqui para nos enganar, mas para “animar a malta”, brinca. Também para nos “fazer pensar”. E para nos “ajudar a formar alguma consciência colectiva, porque sozinhos não conseguimos mudar nada – mas juntos talvez o consigamos”. É raro ouvir alguém falar assim, seja na esplanada de um café ou numa canção. É isso que faz de um álbum como este Defesa Pessoal um objecto precioso.
Desde o início deste século que, em Portugal e no Norte global, as crises do sistema capitalista se sucedem. Todavia, poucos cantam sobre isso. “Parece que anda tudo adormecido”, reconhece. Ele, contudo, está bem desperto. Talvez porque a filha teve de fugir para Londres em busca do futuro que aqui lhe era negado. Ou porque a mulher foi despedida, depois de ter sido despromovida de trabalhadora para “colaboradora” – é para isto que serve a novilíngua; lembram-se de quando José Mário Branco dizia que “somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer”? Passaram-se 30 anos, eles “conseguiram fazer-nos esquecer”, e estamos como estamos. Mas ele não se esquece e, ao longo de uma hora de conversa, vai dizendo o que tem de ser dito: que “o elevador social é o maior embuste do século XXI”; que “tudo aquilo que os nossos pais conseguiram, de repente, está a ser aniquilado”; que “querem levar-nos de volta para o século XIX”.
Há frases e mensagens igualmente certeiras no disco. Oiça-se a “Balada do Trabalhador”, a lembrar as canções de protesto dos 70s, assombrada pelos espíritos de José Afonso e José Mário Branco, a falar de piquetes, a opor trabalhadores e patrões, a dizer que “há sempre um lado que produz e o outro, o outro controla a produção”, a perguntar “se sou eu que dou o sangue e o suor, porque é que há-de ser o outro a enriquecer”? Uma maravilha. Ou, a encerrar o álbum, “O Povo É Que Manda”, tão ou mais engajada, partindo de quadras de António Aleixo para recordar umas quantas verdades que os donos disto tudo querem que olvidemos. Também há canções sobre a crise da habitação, sobre a guerra, até sobre o rendimento básico universal – “uma boa proposta do Livre”, considera.
Defesa Pessoal é, porém, mais do que um disco politicamente engajado e refém do actual contexto socio-económico. É, como o título sugere, um registo pessoal, em que escutamos ecos de vários momentos da carreira do músico português: tem a acidez dos Peste & Sida, a boa onda ska dos Despe e Siga, há chulas e outras influências portuguesas que remetem para os seus projectos com João Aguardela e, claro, uns quantos pontos de contacto com o anterior álbum de Luta Livre. Mas não demasiados.
“Quando comecei a compor este disco, ainda usei algumas coisas que me tinham sobrado do outro disco, tinha alguns samples. Só que depois achei que estava a fazer a mesma coisa, o mesmo disco. Então pus isso de lado e peguei na guitarra eléctrica, que é o meu instrumento desde sempre, comecei a tocar, e percebi que já tinha alguns textos que encaixavam bem naquilo que estava a fazer”, explica. “Há músicos que encontram uma forma de fazer as coisas, e vão sempre por ali. Mas eu não gosto de fazer dois discos iguais.”
Parque da Vila (Quinta do Conde). Ter 18.00. Entrada livre