Desde 2017 que o festival e convenção MIL – Lisbon International Music Network, que este ano se realiza entre quarta, 27, e sexta-feira, 29, promove o diálogo entre os agentes musicais e outros sectores da sociedade. Fá-lo através dos concertos, que à noite enchem as ruas do Cais do Sodré de um público sedento de novidades, mas sobretudo nas conferências, debates e masterclasses diurnos. Pedro Azevedo, um dos programadores do MIL e do Musicbox, gosta de dizer que “o desafio é conseguir que a convenção não seja um sítio onde só se fala de arte e da indústria musical, mas que tenha temas que são urgentes ou pertinentes para a sociedade em geral discutir”.
Esta abordagem tem tanto de desafiante como de correcta. Afinal, a música e a arte que vale a pena espelha, e ocasionalmente molda, a sociedade que a produz. O trabalho dos críticos, curadores e programadores culturais é – ou devia ser, pelo menos – mostrar como e o que é ao certo reflectido, mapear ligações entre artistas esteticamente díspares e o contexto histórico e material em que trabalham. Quando há umas semanas fomos ao encontro dos Meia/Fé, auto-intitulado “gangue juvenil insurgente baseado” que dá o quarto concerto da sua ainda curta mas vibrante existência na sexta-feira, 29, no Titanic Sur Mer, no âmbito do MIL, a ideia era perceber quem eram, de onde vinham, o que fazia os seus corações bater e instrumentos estrebuchar; ajudar a sua música a chegar a mais ouvidos.
Mas bastou um minuto para a conversa tocar no primeiro de muitos pontos fracturantes que ameaçam fazer a Lisboa contemporânea soçobrar. Mariana Amaral, 21 anos, metade de 80 Tu & Eu e uma das três fundadoras do colectivo, estava a quatro dias de ir para a Hungria fazer Erasmus. A outra metade do duo, Matilde Roselló, de 23, mudou-se para o Porto. Tal como Lourenço Dias, que se diz Yung Xalana mas é o mais velho desta trupe, com 26 anos. Henrique Carvalho, 24, ou casaxangai, o quarto elemento, que se juntou a eles pouco antes do primeiro concerto, a 17 de Junho na Sociedade Musical União Paredense, fugiu para a Dinamarca. Porquê esta debandada? “Estamos chateados com a cidade”, dispara Lourenço. “É cada vez mais difícil viver aqui.”
“Mais vale fazer arte de merda que passar a vida a anhar”
Dos quatro, Lourenço é o único que não nasceu e cresceu em Lisboa. Vivia em Alcochete e lembra-se de vir a Lisboa ser um “evento” e da cidade ter uma certa “magia” quando era mais novo. Para um adolescente, sem carro, refém de transportes públicos que param de circular demasiado cedo, não há grande diferença entre os 35 quilómetros que separam Alcochete do centro da cidade e os 350 que separam Lisboa do Porto – e até há mais transportes para o Porto, até mais tarde. Hoje, porém, a magia esfumou-se. “A cidade, como todos sabemos, está cada vez mais gentrificada”, resume Mariana. “Já não há tantos sítios para onde sair, quase não há tascas onde jantar. As pessoas estão preocupadas com isso, mas não fazem grande coisa.” Lourenço interrompe: “O pessoal sai, bebe umas jolas, queixa-se, mas ninguém faz absolutamente nada. E nós também não fazíamos.”
Até que, um dia, decidiram fazer qualquer coisa. “Vimos que éramos parte do problema. Contaminados pela inércia, a falar para o ar. E um dia dissemos ‘chega! Bora fazer uma merda”, recorda Lourenço. “Todos tínhamos as nossas inseguranças e os nossos medos, mas não podíamos continuar só a criticar sem fazer nada.” Pouco tempo depois, Yung Xalana e as 80 Tu & Eu arranjaram um estúdio em Benfica, e começaram a fazer música. A primeira canção que partilharam com o mundo, há cinco meses, é um hino lo-fi a lembrar as várias “Fetras” cantadas por bandas e artistas da Cafetra, em espírito, se não em som. Os versos são ouro, mas algumas estrofes brilham mais forte. Por exemplo, “só sei dois ou três acordes/ mas se isso chega para tocar/ e para vos pôr a babar/ então eu continuo e pode ser que um dia/ chegue a jovem superstar”; ou “as minhas rimas são a-b-a-b/ e eu nem sei cantar/ mas mais vale fazer arte de merda/ que passar a vida a anhar”. É tão verdade.
Seguiram-se mais duas canções: “Mundo de Party”, pueril hino dream-pop de 80 Tu & Eu, em Abril; e “goth bvtch", rock sujo e para lá de lo-fi com o cunho de Yung Xalana, em Maio. Algum tempo depois, em Junho, estavam a dar o primeiro concerto numa Noite Fetra & Amigos na SMUP. Partilharam o cartaz com Panda Bear & Sonic Boom, Éme e Moxila, Maria Putas Reis Bêbadas e outros patrões. Porém, é do seu concerto que nos lembramos. O futuro ali à frente, gente sentada e de pé a ouvi-lo. Casaxangai já estava com eles nessa altura. “Ele é nosso amigo já há muito tempo, só que tinha a sua vida”, explica Mariana. “Nós os três é que estávamos na mesma faculdade [de Letras da Universidade de Lisboa] e passávamos mais tempo juntos. Mas um dia fomos ter com o Henrique, mostrámos as nossas músicas e ele ao fim de um dia manda-nos a dele.”
“A dele” era “404” e, poucos dias depois de escrevê-la, estava a tocá-la na SMUP. Duas ou três semanas mais tarde, a canção estava gravada e posta no Youtube. Quando o programador Pedro Azevedo a ouviu, no Instagram de um amigo, disse logo que eles tinham de ir ao MIL. “O Henrique tem ouvido absoluto. E toca desde os nove anos”, gaba Mariana. “Ao mesmo tempo, é um gajo com muito pouco foco”, completa Lourenço. “Sabe muito, mas acho que esta é a primeira música que ele lança mesmo a sério”, continua. “E foi connosco”, interpola Mariana, orgulhosa. “Ya, ele nunca gostou muito de dar nas vistas. Fazia as coisas, mas ficava lá atrás”, fala agora Lourenço. “Ele produziu canções para Chico da Tina e Bejaflor e pessoal assim”, completa a mais nova do grupo.
À SMUP e a “404”, seguiram-se mais dois concertos. O segundo, que a banda não adorou, foi no NAV e teve alguns problemas técnicos. Mas o terceiro, nas Damas, foi uma beleza. Quem lá esteve comparou-os aos Passos em Volta, banda basilar da Cafetra. Tocaram sem Matilde, que estava fora, mas com João Pedro Lima e Daniel Fonseca a acompanhá-los. “Meia/Fé mesmo somos nós os quatro: Yung Xalana, 80 Tu & Eu e casaxangai, no entanto podem juntar-se outras pessoas”, resume Mariana. Com naturalidade e boa onda, sem compromissos. “Nós estávamos no carro do Dani, que tinha tocado baixo com Vaiapraia mas agora não andava a fazer nada, e foi tipo ‘sei que nunca tocaste bateria, contudo, se nos prometeres que te comprometes, ensaiamos todos os dias até ao concerto e tocas connosco nas Damas, na bateria’. Ele estava de férias do trabalho, e disse ‘bora lá’.”
A partir desta altura a conversa descamba. Fala-se de tudo e de nada, pedem-se mais canecas, queixamo-nos das dating apps, de amigos da escola, das cicatrizes que a pandemia deixou, da falta de oportunidades e do quão mal as bandas recebem. E aí a entrevista volta a entrar nos eixos. “Ninguém está nisto pelo guito, só um maluco”, diz Lourenço. “Nós quando formos tocar à ZDB [em Novembro, na primeira parte de Slauson Malone 1] vamos perder dinheiro quase de certeza, a viajar da Dinamarca e da Hungria para cá. Só pode fazer música quem tem algum privilégio. Não há outra maneira”, continua o músico. Reconhece que isso é um problema. Mas qual é a alternativa? A tal inércia de que falávamos, sugere-se. “Isso não. Lá está, já sabíamos que nos íamos embora quando começámos isto. De certa forma, Meia/Fé é a nossa carta de despedida a Lisboa. Lembro-me de dizer que não podíamos ir embora depois deste tempo todo sem deixarmos alguma coisa por trás. Isso era triste.” Oh, se era.
Titanic Sur Mer. Sex 29. 20.00.