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O luto pelo futuro de Sallim devolve-nos a esperança no presente

A cantora e compositora da Cafetra não quis deixar 2023 acabar sem lançar cá para fora um novo disco. Este sábado, apresenta ‘a dor, o diagnóstico e o desejo’ na Lisa.

Luís Filipe Rodrigues
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Há uns meses, a caminho do Algarve, alguém dizia que Sallim podia – ou “devia” mesmo; passou algum tempo e a memória começa a vacilar – ser a Ariana Grande ou a Taylor Swift portuguesa. Na altura, pareceu um generoso exagero. Até que, no último dia do ano, sem aviso prévio, ela partilhou com o mundo a dor, o diagn​ó​stico e o desejo, disco com um título à altura das músicas que o preenchem. Este sábado, 27 de Janeiro, apresenta o mini-álbum e outras novas canções na Lisa.

A dor, o diagn​ó​stico e o desejo talvez não seja o melhor disco de Sallim – esse continua a ser A ver o que acontece, de 2019, o mais perto que ela já esteve da perfeição. Tem, no entanto, a sua melhor composição original, a inaugural “dezembro”: os dedos a tocarem nas cordas da guitarra com o peso da desilusão, a melodia tão bela como magoada, um canto que é catarse frágil e tremida, e em segundo plano a sua voz, despida, a falar ao telefone com alguém que não ouvimos – será uma chamada real ou apenas uma encenação? Os magos nunca devem revelar os seus segredos.

A ideia era “dezembro” não passar de um aparte no parágrafo anterior, mas exigiu mais espaço para si e os dedos que escrevem estas linhas não resistiram. É a melhor composição original de Sallim, repita-se, e nem é o ponto alto deste disco. Isso é “podias ser tu (the 1)”, uma versão de Taylor Swift. Aliás, é mais do que isso: é uma adaptação, uma apropriação, uma elevação. Pega nas palavras de “the 1” de Swift, mas não se limita a traduzi-las, apodera-se delas, encharca-as de vida. A original tornou-se um hit por qualquer pessoa conseguir rever-se nela. A canção de Sallim superou-a pela sua especificidade. Quando ela diz que lhe faz falta “ir a Lagos, ao cinema lado a lado”, mesmo quem não sente isso é transportado para os seus Lagos e cinemas privados, outras cidades, outros sítios.

Sente-se que isto é pessoal. Um registo “cru e frágil”, nas palavras da autora, que apesar de incluir um par de versões – há também a “canção longe”, popular dos Açores, tal como cantada por José Afonso – nunca deixa de ser dela. Mesmo quando canta as palavras dos outros. “Não sou grande swiftie mas dei por mim a ouvir bastante a ‘the 1’ (a partir da qual fiz a ‘podias ser tu’) no Verão. Como quase todas as canções da Taylor, é uma break-up song, que na altura, por motivos pessoais, me bateu especialmente. Todo o meu álbum também é um break-up album, pelo que acho que esta versão está no lugar certo.”

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“O luto nunca termina propriamente”

O rompimento a que alude explica também o título, que o disco partilha com a sua dissertação de mestrado em Estética e Estudos Artísticos. “Tem como tema a expressão vocal no trabalho do luto e a vocalização do luto no trabalho de criação. É um projecto de investigação que me tem acompanhado nos últimos anos e que surge de questões muito ligadas ao meu trabalho musical”, descreve. “As minhas canções, e talvez este álbum em particular, que é, no fundo, um álbum de luto e perda, partem frequentemente de um lugar que desperta e é despertado por mecanismos de identificação de faltas, falhas e longing que caracterizam a experiência do luto e, ao mesmo tempo, lhe resistem.” 

“Às vezes sinto que, quando faço uma canção, estou a resistir ao desaparecimento daquilo que [ela] invoca, como uma cápsula do tempo onde posso guardar coisas, ou uma passagem. A voz estabelece uma relação com tudo isto que me parece especialmente interessante, desde logo pelo facto de sinalizar a presença do corpo vivo que a produz, ao mesmo tempo que, pelo seu carácter relacional, convoca o corpo vivo que a recebe/ouve, num espaço que não é nem de um nem de outro”, continua. “A minha pesquisa também tem identificado a enorme importância que a voz e a expressão vocal sempre tiveram em contextos de rituais fúnebres, como veículo de chamamento e conexão, e aborda ainda a questão de género que atravessa esta relação temática voz/luto.”

No disco, o luto não é pelos mortos, mas por alguém vivo. Um processo mais difícil e espinhoso. Quando uma pessoa morre, sabemos que não vai voltar – talvez por isso, quando terminamos o luto, é possível seguir em frente. Quando uma pessoa desaparece, por outro lado, há uma esperança e um receio do retorno: sabemos que a desparecida pode e talvez vá mesmo voltar. Por isso, nunca deixa de nos assombrar. Não dá para esconjurar os vivos. “Reconheço essa distinção”, diz, ”mas estou mais interessada naquilo que é comum a ambos esses lutos – e a qualquer tipo de luto.”

“[O luto] pode nem ser por uma pessoa, pode ser por um sítio, um tempo, uma ideia, por objectos, por quem já fomos e deixámos de ser... Aliás, normalmente, no luto, lidamos sempre com a perda de algo em nós.” Interessa-lhe “o luto como relação melancólica e criativa com a existência no geral, connosco, com o outro. Olhar para o luto como algo mais do que apenas uma relação com o passado. Obviamente diz respeito ao que já foi, mas é também vivido agora e projecta-se no que virá. Inclusive é possível um luto pelo futuro (penso que, nos nossos dias, isso é algo muito presente).”

“Uma ideia que exploro na minha tese, e que parte de aspectos da minha experiência pessoal, vida quotidiana e processos de criação/composição de canções, é a ideia do luto como processo de resistência”, explica. “Enquanto tal, o luto nunca termina propriamente. O que é irrecuperável não se substitui. Mas o lugar desse vazio também nunca desaparece. Então, interessa-me pensar no luto enquanto manutenção constante de um diálogo – com o que já não está (onde estava), ou já não é (como era), ou sabemos que vai deixar de ser – que resiste à substituição, à resolução e ao tratamento. O luto pode ser uma forma de contestar um lugar (aberto) para os nossos fantasmas.”

“A música é sempre um exercício de purga”

Sallim andava meio desaparecida. Continuávamos  a vê-lo em concertos – no público e no palco, normalmente ao lado dos camaradas da Cafetra – mas não partilhava canções novas há quase cinco anos, desde o lançamento, em Janeiro de 2019, de A ver o que acontece. “Foi [o resultado de] um conjunto de vários factores, que têm a ver sobretudo com disponibilidade e circunstâncias externas – a tese, outros projectos e demandas, um trabalho full time, entre outras coisas – mas também com a necessidade de alguma introspecção e acumulação de novo material”,  detalha.

“Fiz uma data de canções nestes cinco anos, algumas já tenho vindo a tocar ao vivo há bastante tempo, mas só recentemente senti que tinha um conjunto suficientemente sólido e consegui abrir espaço para começar a trabalhar no modo como quero que elas sejam cristalizadas”, continua. Quando falámos sobre as edições da Cafetra para os próximos meses, pouco antes do final do ano, disse que tinha umas canções que gostava de editar em 2024, mas não sabia quando nem como. Não era, todavia, n’a dor, o diagnóstico e o desejo que estava a pensar na altura. “Tenho outras canções, que têm sido tocadas ao vivo e que também já comecei a gravar”, confidencia. “Hão-de ter o seu momento, mas precisam de outro tipo de produção. Este álbum, pelo contrário, fazia sentido assim, mais cru e frágil.”

“Mas só na semana em que lancei [a dor, o diagnóstico e o desejo] é que tomei essa decisão”, exclama. “Tive uns dias de férias de Natal, estava no quarto a tocar e compus a ‘novo início’. Não acontece sempre, mas decidi gravá-la imediatamente. Quando ficou pronta, foi uma espécie de clique, como se tivesse encontrado a última peça de um puzzle que de repente fez todo o sentido. Em quatro dias, gravou também a “dezembro”, a “podias ser tu”, as vozes da “linha de tempo” (“por cima do teclado captado no concerto na SMUP, em Junho, com a Leonor Arnaut, mantendo os arranjos vocais dela ao vivo”) e o texto-poema “partida”. Só a segunda faixa, “é o fim?”, e a versão do Zeca é que estavam guardadas há algum tempo no baú.

“Não sei explicar muito bem, mas foi como se este conjunto de fragmentos não tivesse outra hipótese que não formar um todo, que tinha absolutamente de sair para fora no último dia do ano. Claro que a data é simbólica, é um fim a dar a volta. Sinto que este álbum é, ao mesmo tempo, um desfecho e um preâmbulo, um lamento e um bom omen de passagem”, considera. “Tive a sorte do meu amigo Filipe Paes, que me tem estado a ajudar a gravar e a produzir outras canções (era mais a essas que me estava a referir quando falámos), estar disponível na tarde de 31 para dar uns retoques (mistura e master) em tempo recorde.”

“A música para mim é sempre um exercício de purga. E essa sensação de serem as próprias canções a revelar-me coisas acompanha-me deste sempre (e ainda assim continua a espantar-me)”, reflecte. “As canções guardam nelas o que só nelas poderia caber, e ajudam-me a perceber melhor coisas sobre mim e o que estou a sentir, como uma espécie de síntese.”

“A ‘novo início’ trouxe-me algo que posso considerar como uma espécie de desfecho, que, ao mesmo tempo, sinaliza um recomeço (ou um wishful thinking de recomeço… ainda que sem negligenciar tudo o me trouxe aqui e que nunca fica 100% para trás).” Daí, percebe-se, este lançamento numa data tão invulgar, no final da tarde de 31 de Dezembro, quando todos estavam distraídos. “É uma cápsula bastante fiel de muito daquilo que vivi e senti ao longo deste ano.” Sábado, vamos revivê-lo com ela.

Lisa. 27 Jan (Sáb). 22.00. 8€

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Continuamos à conversa

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