Madonna
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Steven Klein

Onde está Lisboa no novo álbum de Madonna?

“Madame X” é confessional, grandiloquente e antitético. O disco da rainha emérita da pop tem tanto de ambicioso como de cauteloso.

Hugo Torres
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★★★☆☆

A abertura de Madame X dificilmente definiria melhor o tom para o resto do disco: promete um chá-chá-chá, evolui para uma electrónica suave, enquanto Madonna vai desfiando uns versos melancólicos sobre voltar a ter 17 anos, até que Maluma entra de rompante e traz consigo o reggaeton, as referências à rumba nas ruas colombianas e um discurso sexualizado e brejeiro. “Medellín” foi o tema escolhido para primeiro single, não apenas para atrair o máximo de atenção dos consumidores da pop global, muito atentos a tudo o que soe a América Latina, mas também porque é a síntese deste 14.º álbum da norte-americana, que é lançado nesta sexta-feira.

“Medellin” assemelha-se a um hino de Mundial de futebol, competição que a cada quatro anos nos tenta convencer, esvoaçando bandeirinhas multicores, da bondade e da probidade de uma indústria multimilionária. O que Madonna aqui faz é equivalente. Um conglomerado de ritmos, vozes e influências, sobrepostas sem outro critério evidente que não seja encher o passaporte, e cuja presença é justificada por uma personagem, Madame X, que a cantora diz ser agente secreta, bailarina, professora, chefe de Estado, dona de casa, freira, prostituta. O que uniria as pontas, caso estivéssemos diante de um álbum vagamente conceptual. Mas Madonna deambula entre as letras confessionais, as diatribes e a grandiloquência política.

A artista outrora conhecida como rainha da pop parece igualmente empenhada em reclamar o título de volta – arriscando na guitarra portuguesa do miúdo Gaspar Varela (bisneto de Celeste Rodrigues), em “Killers Who Are Partying” e “Extreme Occident”; apostando num tema da portuguesa Blaya (“Faz Gostoso”); convocando o pulsar cabo-verdiano da Orquestra Batukadeiras (“Batuka”, co-escrito pelo filho David Banda, o jovem futebolista do Benfica) – e em deixá-lo por mãos alheias. Madonna dilui tudo em beats indistinguíveis e na nefasta e sintetizada mole do trap. O que faz uma caixa de ritmos no tema que partilha com as Batukadeiras? É uma incógnita. Se alguém nos poderia tirar deste casamento plástico entre pop, electrónica, hip-hop e a necessidade de alcançar targets latinos, seria Madonna. Mas a autora de Like a Virgin (1984) ou Like a Prayer (1989, a celebrar 30 anos) já não ocupa o trono. Não é Beyoncé (que, a propósito, confessava em “Haunted”, em 2013: “Soul not for sale/ Probably won’t make no money off this, oh well”).

Madonna perdeu a capacidade de liderar a pop, de identificar novos caminhos e de os tornar seus antes de eles se tornarem mainstream. A voz de “Material Girl” não está ao nível das expectativas e o seu instinto de sobrevivência leva-a a recorrer a fórmulas pré-validadas. Uma estrela desta dimensão deve ter exigências contratuais e uma engrenagem de dimensões consideráveis para alimentar – mas não ficaria mal a Madonna puxar dos galões; beneficiaria toda a gente. Madame X é o seu melhor disco desde Confessions on a Dance Floor (2005), mas isso é sobretudo prova da menoridade dos três discos lançados entre um e outro.

As melodias orelhudas são esparsas. Os fãs talvez se agarrem a “God Control”, o melhor tema do disco, a traçar uma linha recta entre Abba e Daft Punk, com um baixo guloso a enquadrar um funk a preceito (embora a produção o tenha remetido para segundo plano), cordas esvoaçantes, piano e coro gospel. “Wake up! Wake up! Wake up!”, repete Madonna. É a primeira das canções directamente relacionados com a peste das armas nos EUA. A outra encerra o disco: “I Rise”, que tem um preâmbulo com palavras de ordem de Emma Gonzalez, a mais vocal das sobreviventes do massacre de Parkland, que colhe de seguida o respaldo de Madonna (“No one can hurt you now unless you want them to”). Em “Dark Ballet”, defende as minorias LBGT, e inspira-se para isso numa das mais relevantes transsexuais da história da música electrónica – Wendy Carlos – e na “Marcha” que esta compôs, a partir da Nona de Beethoven, para a banda sonora da Laranja Mecânica de Kubrick. A cantora põe-se do lado dos fracos e dos oprimidos, uma proclamação de geometria variável, como ouvimos em “Killers Who Are Partying”: “I’ll be Islam if Islam is hated. I’ll be Israel if they’re incarcerated. I’ll be Native Indian if the Indian has been taken.” Há um verso difícil de engolir para os indígenas alfacinhas que têm seguido os pequenos favores que tem recolhido em Lisboa: “I will be poor if the poor are humiliated”.

A vivência em Lisboa, cidade “muito medieval” na avaliação da diva ao The New York Times, e a esperada influência do seu caldeirão multicultural, pouco se ouve. Há umas frases em português perpassando o alinhamento – “O mundo é selvagem/ O caminho é solitário” (“Killers Who Are Partying”), “Eu te amo mas não deixo você me destruir” (“Crazy”), “Aquilo que mais me magoa/ É que eu não estava perdida” (“Extreme Occident”) –, mas logo traduzidos em inglês. Uma necessidade que não existe nas canções em castelhano. Mesmo a escolha da brasileira Anitta para o dueto em “Faz Gostoso”, expurgado do kuduro e reduzido a samba de Carnaval, é um distanciamento desnecessário de Lisboa. A cantora teria feito melhor em deixar as canções mais despidas, impedindo os produtores (Mirwais Ahmadzai, Mike Dean, Diplo) de as normalizar. Deveria ter arriscado. Como diria a portuguesíssima Beatriz Gosta, quem acredita, vai – e Madonna não foi.

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