O mais recente álbum dos Glockenwise, Gótico Português, tem pouco de gótico, tudo de português e é uma das melhores coisas que vão passar pelos nossos ouvidos nos próximos meses. Falámos sobre ele com o vocalista Nuno Rodrigues.
Lofizera, o álbum de estreia dos VEENHO, abre com insolência – a atitude – e “Insolência” – a canção. Ouvimo-la pela primeira vez em Dezembro de 2020, quando era apenas mais um single. Passados três anos, mantém a mesma urgência e pertinência. Aliás, para muitos, depois de uma pandemia que arruinou milhões e num contexto em que as crises se multiplicam e os horizontes de futuro se desvanecem, as suas palavras podem até soar mais pertinentes. Quando nos sentimos a afogar, assustados e à procura de um – de qualquer – salva-vidas, precisamos ainda mais de ouvir que “amanhã assusta/ lofizera para nos salvar”.
Escutámos pela primeira vez a palavra “lofizera” há meia dúzia de anos, a meio de VEEENHO, o segundo EP da banda lisboeta. A faixa chamava-se “Cerveja Lofizera”, tinha menos de três minutos e pouco mais de dez palavras: “depressão matinal/ saudades da galera/ que nunca morra este sol/ nem a cerveja lofizera”. Guitarras a estrebuchar, riffs colados ao melhor indie rock dos 90s, secção rítmica inquieta, e um homem a repetir estes versos as vezes que fosse preciso. Na altura, os VEENHO lembravam os Wavves – até os títulos dos discos evocavam os californianos, com uma das letras a repetir-se no nome do grupo e no título do primeiro EP, e a mesma letra fora de sítio a surgir três vezes no segundo.
Os VEENHO de 2017 eram uma boa banda, com energia, fúria de viver e as referências certas. Não havia muitas assim em Portugal. Foi por isso que Manel Lourenço, a Primeira Dama da Xita Records, os convidou para se juntarem à editora, algum tempo depois de terem gravado o EP inaugural com a cantora, compositora e produtora Filipe Sambado. “Foi ela que disse ao Manel que tinha de nos levar para Xita, num concerto”, lembra o baterista e letrista Martim Brito. Há seis anos ainda estavam, no entanto, em busca de uma identidade, cheios de dúvidas. São os próprios que o reconhecem hoje, na ressaca de um álbum de estreia que tardou seis anos a nascer. E que podia nem ter chegado a sair.
“Gravámos as bases do disco há bastante tempo, mas só acabámos de compor tudo mais recentemente”, detalha o baterista. “Quando lançámos o primeiro single ainda não tínhamos o disco pronto. Sabíamos que iam ser 14 músicas, tínhamos as 14 bases, só que faltavam os overdubs, as guitarras, as vozes. E as letras”, detalha. Queríamos ter um som muito específico e passámos algum tempo a tentar acertar com ele.” Que som era esse? “Tem a ver com a dualidade melodia/barulho, caos/harmonia; com pegar numa ideia maior e cortar tudo o que não é fundamental”, explica. “E estávamos à procura de uma identidade e de uma forma de nos expressarmos que fizesse sentido para e fosse de alguma forma nossa.”
Junte-se a isto a pandemia, que virou a vida de todos do avesso, e começa a perceber-se a demora. “Também estivemos muito tempo a pensar se fazia sentido continuar com isto”, recorda Martim. “E fazia. Ainda não tínhamos feito o que achávamos que podíamos fazer. Nem dito o que tínhamos para dizer. Mas ao longo do processo [de composição e gravação] parámos várias vezes. Ocasionalmente, por não termos a certeza se isto valia mesmo a pena, mas também porque não somos as pessoas mais motivadas”, confidencia. “E temos as nossas inseguranças.” Ouvindo o resultado final, não tinham razões para se sentir inseguros. Ainda bem que sentiram, porém. É preciso uma certa descrença – em nós e no mundo – para se fazerem canções destas, honestas e doridas, lacerantes mas salvíficas.
“As dúvidas que estávamos a ter quando o estávamos a gravar ainda estão cá”, considera António Eça, o guitarrista que empresta a voz às palavras de Martim. “Mas é a primeira vez que fazemos algo com que estou mesmo satisfeito. Orgulhoso, se calhar, é demasiado forte. Mas estou em paz, ficou o disco que queríamos ter feito. Estamos contentes de o ter feito e de termos achado que valia a pena fazê-lo”, assume o letrista. Nós também estamos.
“Haver pessoas que sentem o mesmo, e ter sido importantes para elas, já é bastante bom. Estamos mais motivados do que é costume. Mesmo para fazermos mais canções e não perdermos tantos anos até à próxima cena”, continua o baterista. Está prestes a revelar os planos para os próximos meses – tocar muito; por agora só está anunciada uma data na ZDB em Novembro, todavia há outros concertos em negociação. E para o ano que vem – voltar ao estúdio. Mas arrepende-se. “Tenho medo de falar muito.” Não quer agoirar.
Nem vale a pena. Por agora, Martim, António e o resto da banda – Xixo e o guitarrista Bea, que durante os últimos anos tinha sido substituído por Gonçalo Formiga, dos Cave Story, mas entretanto voltou; além de Manel Lourenço, que canta em quase todas as faixas do álbum e os acompanha ao vivo – querem concentrar-se em Lofizera. E o álbum, editado este Verão, merece que se concentrem nele. Tem só meia-hora e 14 canções, mas está pronto para reverberar eternamente e feito para ser ouvido em repeat. Uma e outra vez.
As letras dizem muito com poucas palavras; dialogam com o passado da banda e com o mundo que os rodeia. As músicas não têm gorduras, só músculo (incluindo um coração que bate forte); são herdeiras do shoegaze, dos pioneiros do indie rock norte-americano dos anos 80 e 90, e dos grupos que se inspiraram neles nos primeiros anos deste século, mas têm uma sensibilidade própria. “É um conjunto de canções criadas a partir da perspectiva masculina sem ceder à toxicidade que geralmente lhe é associada, aceitando as suas fragilidades com dignidade”, como lembra – e bem – o cantor e músico Alex D’Alva Teixeira no ensaio em que apresenta o disco. Com sorte, vão inspirar quem vier a seguir. Se não houver descendência, contudo, não faz mal. Já nos deram o suficiente. Deram “Lofizera para nos salvar”.