Pedro Mafama lançou este ano Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente, disco de bailes, rumbas e marchas. De festa. Falámos sobre o desafio de fazer música feliz. Mas não só.
Ricardo Ribeiro ainda mal acabou de dizer olá quando pergunta se “podemos tratar-nos por tu?” Claro que sim. A empatia é imediata. É um homem pacato, honesto e, como bom alentejano (adoptivo) que é, gosta de meter à vontade quem fala com ele. É frontal e não deixa nada por dizer, mas mede as palavras e pede desculpa sempre que discorda de uma pergunta ou afirmação. Por exemplo, a editora Warner descreve o novo álbum, Terra que Vale o Céu, como um regresso ao fado. Mas ele não parece estar totalmente de acordo. O fado, diz, está presente em tudo o que fez, o que faz, o que fará. Mesmo quando é contaminado por outras músicas do mundo.
Dirias que o Terra que Vale o Céu é o teu primeiro disco em sete anos, ou seja, desde o Hoje É Assim, Amanhã Não Sei? Ou em quatro, desde o Respeitosa Mente, que fizeste com o João Paulo Esteves da Silva e Jarrod Cagwin?
É o disco depois de quatro anos, depois do Respeitosa Mente. Mas não ligo muito a essas coisas.
Se bem que este disco está mais próximo do Hoje É Assim, Amanhã Não Sei, que era um disco de fado, do que do Respeitosa Mente, mais mediterrânico e longe do fado.
Perdoa-me discordar um bocadinho dessa tua opinião. Porque o fado está sempre presente [nos discos que faço], não se consegue dissociar. Amália dizia muito sabiamente e muito inteligentemente: “Eu nunca vou deixar de ser uma batata. Posso ser uma batata frita, cozida ou assada, mas serei sempre uma batata.” Neste caso, como gosto mais de tomate, nunca vou deixar de ser um tomate. Ou seja, pode ser seco, assado, cozido, em doce, mas serei sempre um tomate. E, portanto, creio que este disco não é um seguimento, nem uma continuidade de um nem de outro. É outro disco, onde está mais vincada a minha personalidade, mais virado para o Sul e mais ligado ao Mediterrâneo e a essa cultura.
Por exemplo, o Magrebe ou uma maneira de cantar que podemos associar aos ciganos está muito presente em várias canções.
Exacto. É uma forma de cantar muito mais mediterrânica, não é?
Completamente.
Um bocadinho mais apoiada na garganta, com um canto mais melismático. No fundo, é um disco mais ibérico, mais mediterrânico.
Ao mesmo tempo, é um disco com fados tradicionais, puros e duros.
Muitos.
E depois há uma canção brasileira tradicional, do Zé do Norte. Tu falas muito das tuas influências como sendo mais mediterrânicas do que atlânticas. Porque achaste que a “Sodade, Meu Bem, Sodade” fazia sentido no contexto deste disco?
Primeiro, porque é uma canção maravilhosa, muito poderosa e muito bonita. E depois porque, pela maneira como está construída, é muito mediterrânica. Por exemplo, é muito modal, que é o sistema mediterrâneo. Aliás, nos arquivos do Museu do Fado existe uma música tocada por um senhor do final do século XIX, princípio do século XX, que é muito parecida com esta. Portanto, se não tivesses lido os créditos, se calhar não me dirias que era uma cantiga brasileira.
Por acaso até diria, porque já conhecia a canção antes de te ouvir cantá-la, através da versão do Bonga.
Há uma versão do Bonga?
Sim, de 2016 [no disco Recados de Fora].
Olha, não conhecia essa. Tenho que ir ouvir. Boa, obrigado, obrigadíssimo. Mas pronto, se tu a ouvires, e depois da forma como ela está cantada e acompanhada, não parece brasileira. No fundo, quis trazê-la para a minha linguagem.
Neste disco colaboraste com uma série de pessoas com quem já tinhas colaborado e tinhas uma relação, por exemplo o Cagwin ou a Carminho. Mas há também pessoas com quem nunca tinhas trabalhado.
A Amélia Muge, por exemplo.
É verdade.
Nunca tinha feito música com ela. Mas, sempre que ela cantava e escrevia para outras pessoas, eu dizia que um dia teria um tema feito pela Amélia. Aconteceu neste disco. Sabes que ela tem um dos temas da música portuguesa de que eu mais gosto, que é um poema maravilhoso do Eugénio Lisboa, que estive quase para gravar neste disco. Chama-se “Transparência” e tem uma frase muito conhecida do Pessoa que é “morrer é só não ser visto”.
Já tem quase 20 anos, essa canção. Está no Não Sou Daqui [2006], não é?
Sim. Que tem também um poema lindíssimo do Ramos Rosa: “Entre o Deserto e o Deserto”. E agora, muito generosamente e muito delicadamente, escreveu para mim as “Terras dum Mar Interior”, que é um tema muito arabizado. Como isto anda agora, se calhar ainda vou ser crucificado… Mas não faz mal [risos].
É curioso nunca teres trabalhado com a Amélia porque são pessoas com interesses muito similares, a vossa relação com o Alentejo, com as músicas mediterrânicas, com o próprio fado – apesar de ela não ser uma fadista.
Mas escreve muito para os fadistas. Para a Aldina [Duarte], para o Camané, para a Ana Moura, para o Pedro Moutinho, para tanta gente. E na Terra que Vale o Céu teve a generosidade de fazer este tema extraordinário.
Por falar no Alentejo, sei que te mudaste para lá.
É verdade. Estou desde 2021 a viver em Montemor.
Porquê?
Porque eu sou muito campónio [risos]. E porque o Alentejo é extraordinário. Primeiro, o vento parece que passa ajoelhado; depois, há algo impagável que é chegar à noite cá fora nos dias em que não há nuvens, parece que se apanha o céu. E tudo aquilo é de uma beleza extraordinária. Tudo obedece à lei das proporções: aqueles sobreiros, aquelas terras, aqueles montes. É impagável aquela terra. É a terra que, para mim, vale o céu.
Foi o Alentejo que inspirou o título do disco?
Sim. E também porque acho que é importante primeiro conquistar a terra para depois conquistar o céu – se é que o céu se conquista.