Rodrigo Amarante
© Eliot Lee Hazel Rodrigo Amarante
© Eliot Lee Hazel

Rodrigo Amarante: “Todos fazemos parte, todos merecemos amor”

Rodrigo Amarante acaba de lançar um dos discos mais maravilhosos de 2021. Falámos com o músico brasileiro, que trocou o calor carioca pelo calor californiano.

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Em 2007, o ano em que os Los Hermanos suspenderam as actividades, Rodrigo Amarante recebeu um convite de Devendra Banhart para gravar uma música. Viajou até Los Angeles e no estúdio reencontrou Fabrizio Moretti de The Strokes, com quem formaria os Little Joy. Entre gravações e digressões, acabou por se apaixonar e deixar a vida fluir. Por lá ficou até hoje, onde o vemos em casa, através de um ecrã, a falar sobre a sua arte. “As melodias meio que aparecem”, conta Rodrigo Amarante, enquanto sorve sumarentos pedacinhos de melancia. “Às vezes aparecem sem serem convidadas, mas nem sempre aparecem magicamente. A prática possibilita as coisas se cristalizarem, porque é preciso eu estar na minha mesa com os papéis e instrumentos para poder pescar. É interessante falar da prática porque desfaz o mito do compositor. Eu quis rejeitar a fantasia da inspiração indomável e fazer um trabalho de investigação emocional. A fantasia de que somos originais, ou de que as minhas músicas são uma expressão pura da minha alma, é uma falácia. As nossas vozes são uma colecção de outras vozes.”

O novo álbum Drama, editado a 16 de Julho, é um som de extravasamento, mais cheio, com orquestrações e melodias da natureza. Há partes do disco em que ele pousa as palavras – são puramente instrumentais, mas cantam e escancaram as emoções. “Não quis esconder, não quis ser ambíguo na musicalidade. Quis correr o risco de dizer: é isso que eu sinto. Sabendo que mesmo sendo objectivo a tentar representar o meu sentimento no máximo de seu floreio, mesmo assim há infinitas possibilidades de sentimentos. Vejo uma tendência hoje em dia em trilhas de filmes de uma ambiguidade chata de mais. Eu entendo isso como subestimar a audiência, que é o maior crime. Eu sempre assumo que as pessoas são muito mais inteligentes do que eu. Às vezes é difícil escrever por causa disso. [risos]”

“Os arranjos foram o campo em que eu pude exercitar esse exagero emocional que eu sou e não segurar nada. Tem a ver com a descoberta de entender o que de mim é o eco das vozes que me ensinaram o que é ser homem, e todas as falácias que acompanham esse discurso – falácias como a ideia de que o homem controla as suas emoções, ao contrário da mulher, que é vítima dos seus sentimentos. Eu carrego muita bagagem que vem desse discurso que me foi passado. Neste disco, eu fui levado a pensar nessa transição de menino para homem e como, mesmo não querendo, eu sou um veículo de continuidade dessa mentalidade do patriarcado. Esse drama, esses arranjos emocionais sem pedir desculpa, têm a ver com isso, é assumir e tentar encontrar esses símbolos, essas coisas que eu carrego, mesmo achando que não carrego. Estou tentando entender o que há em baixo do que eu tive que esconder, consciente ou inconscientemente.”

A música de Rodrigo Amarante nem sempre tem um som tipicamente brasileiro, mas o Brasil parece se entranhar sempre na sua música. Mesmo que quisesse fugir das suas raízes, não conseguiria. “Essa é a coisa engraçada de fugir, vem sempre atrás. Eu não tenho intenção nenhuma de fugir da minha musicalidade brasileira, assim como também não tenho o compromisso de ser autenticamente brasileiro. Então, a musicalidade brasileira emerge livre onde quiser. Dito isso, eu acho engraçado colocar uma máscara, fingir ser o outro, é um exercício muito válido porque a máscara parece abrir portas. O exercício de fugir, nesse sentido de colocar a máscara, acaba por revelar algo que talvez estivesse invisível, e nesse sentido a máscara é um espelho. Acabo me expressando de uma outra forma, desenferrujando uma fechadura emocional. É interessante para mim fingir não ser brasileiro como exercício musical. Na prática da música, este exercício é também muito brasileiro, que é a coisa da antropofagia, de não ser vertical no entendimento da arte.”

Há um conceito importante neste disco – a ideia de que a liberdade é fazer parte. “Isso ecoa de pensamentos como a Nina Simone, que falava que a liberdade é não ter medo – isso nos anos 70, ainda com o movimento negro nos Estados Unidos. No fim de contas, toda a violência e porção destrutiva vem do medo de se estar sozinho. Liberdade é se entender como parte, porque não precisa de ter mérito para isso. Todos fazemos parte, todos merecemos amor. A liberdade individual é uma ideia totalmente imbecil. Eu esbarrei num dicionário analógico – que é um tesouro, porque as palavras são organizadas em classes de ideias, os verbetes são mais amplos e às vezes até poéticos – e vi a expressão em latim noster nostri. Significa 'nosso, nossos', mas outras traduções possíveis eram duas frases que me deixaram pasmo: 'nossos corações batem como um só' e 'aquele nosso velho sonho'. Cara, isso é lindo!”

“O facto de eu ter vindo para os Estados Unidos, e ter aprendido a falar a língua deles, me colocou numa posição de ver um pouco mais de perto a mentalidade que se tornou prevalente no mundo, que é a mentalidade capitalista. Nessa sociedade que espirrou para o mundo inteiro essa mentalidade, há uma veneração da competição que vem da perversão das ideias de Darwin pelos economistas neo-liberais. Então, para evoluir como espécie, o fraco tem que perecer e o forte deve sobreviver para a gente depurar a nossa grande capacidade e assim evoluir – isso é o papo nazista. Do ponto de vista do marketing, essa veneração é muito eficiente porque as pessoas adoram se ver como águias e tubarões, mas a verdade é que nós somos formigas e vermes. Essa veneração da competição é a veneração do privilégio.”

A verdade é que ninguém consegue resistir sozinho. A própria história do Brasil ensina-nos isso – “os direitos nunca nos foram dados, sempre tiveram que ser conquistados, e a única forma é através do colectivo”. Mas também o sabemos instintivamente de outra forma: a dançar. “A beleza é estar junto, esse diálogo, esse amor. Quando você está dançando com um monte de gente, há uma forma de amor por todos aqueles que estão em volta. Na dança, a gente está lendo um ao outro e amando um ao outro porque está dividindo esse momento. Num concerto é a mesma coisa. É melhor ver um concerto num teatro cheio do que sozinho, porque o artista é apenas o veículo do amor que as pessoas têm umas pelas outras. Essa sensação de fazer parte, de nos entendermos como um corpo – tudo de maravilhoso está no colectivo.” Se tudo correr bem, no próximo ano vamos poder experienciar essa maravilha juntos e ao vivo. O Porto (18 de Abril) e Lisboa (19 de Abril) são felizes contemplados da digressão de Rodrigo Amarante em 2022.

Crítica

Rodrigo Amarante - Drama

  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

No novo voo a solo, Rodrigo Amarante preenche o vazio com mais música e amor. No primeiro disco, Cavalo (2013), exilou-se em si mesmo, contemplou o abismo interior, criou obras abertas onde o silêncio reflectia a sua solidão. Em Drama embrenha-se numa floresta encantada de instrumentos, com orquestrações que parecem brotar da natureza, tamanha é a sua frescura e luminosidade. Tem a subtileza e a sensatez de não dizer o que não pode ser dito, de perceber que há coisas que as palavras não alcançam. Por vezes as melodias que o acompanham conseguem dizer mais – há sensibilidade nas peles, cordas, teclas e sopros, uma beleza que escorre entre os sorrisos e os lamentos, com significado e propósito. O piar dos pássaros, o cricrilar dos grilos, as gotas de chuva, as palmas e os assobios fundem-se no calor tropicalista e nos labirintos do jazz, com melodias e ritmos que parecem nascer de algo ancestral. Entre o português e o inglês, roça uma língua na outra e canta-as com a mesma destreza emocional. Em letras sobre a dança dos apaixonados, as coisas que o destino traz e tira, a selva do dinheiro e o absurdo da condição humana, lembra a liberdade maior que é pertencer. Drama é um disco maravilhoso que encontra a paz num momento complexo, que transborda de deslumbramento no meio do doloroso caos que é estar vivo. Rodrigo Amarante tem o dom de fazer arte da vida, caminhando na confusão com gentileza, para se descobrir melhor a si próprio e aos outros.

Conversa afinada

  • Música

Nascidos das cinzas dos Hipnótica, os Beautify Junkyards chegam ao quarto álbum com uma formação que inclui João Branco Kyron (vozes e sintetizadores), Helena Espvall (violoncelo, flauta e guitarra acústica), João Moreira (guitarra acústica e sintetizadores), Sergue Ra (baixo), António Watts (bateria e percussão) e Martinez (vozes). Cosmorama expande o universo tropicalista e psicadélico da banda e pede o título emprestado a uma galeria que existia em Londres na era vitoriana, com projecções de locais distantes e exóticos, um portal para viajar no tempo e no espaço – no fundo, tudo o que pode esperar deste disco.

  • Música
  • Portuguesa

Desde que Mariza apareceu, nunca mais olhamos o fado da mesma forma. Num mundo globalizado, deu-lhe novas cores e coordenadas, mas sem desrespeitar a tradição. Agora a completar 20 anos de percurso musical, Mariza canta Amália, no centenário do nascimento da diva. Já a interpretou várias vezes, mas é a primeira vez que lhe dedica um álbum inteiro. Gravado entre Lisboa e o Rio de Janeiro, o disco conta com arranjos do músico e produtor brasileiro Jaques Morelenbaum. Com guitarra portuguesa, viola e orquestra, afloram influências do jazz e da música clássica, mas também da lusofonia.

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  • Música

Pedro Lucas, que a solo assina como P.S. Lucas, nasceu no Faial, passou por Lisboa, viveu na Dinamarca e está de regresso à capital. Depois do cruzamento entre a electrónica e a música tradicional portuguesa nos discos de Medeiros/Lucas e O Experimentar Na M'Incomoda, assume influências de nomes como Leonard Cohen e Bill Callahan e aposta tudo em canções belas, onde redescobre o prazer da guitarra. O novo álbum In Between conta com o trio nuclear João Hasselberg (contrabaixo), David Eyguesier (guitarra) e João Sousa (bateria), e participações de Catarina Falcão ou Jerry The Cat.

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