Pauta Incompleta
A fuga que Bach deixou incompleta, com a anotação (à direita) do seu filho Carl Phillipp Emanuel

Seis obras-primas clássicas que ficaram por acabar

Vários foram os compositores que não conseguiram terminar as obras que tinham dentro da cabeça – o que não impede que algumas delas façam parte do repertório.

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“Ars longa vita brevis” reza um aforismo latino (com origem grega) que costuma ser traduzido literalmente como “a arte é longa e a vida breve” e que chama a atenção para o facto de ser necessário muito tempo, disciplina e determinação para adquirir e dominar a “arte”, sendo esta entendida no sentido lato de “técnica, conhecimento” – quer diga respeito à composição musical, à ginástica nas barras paralelas ou à preparação de sushi.

Em tempos em que os cuidados de saúde e o poder da medicina eram incipientes, a esperança média de vida era mais breve e as doenças mais debilitantes, pelo que aconteceu que vários compositores partiram deste mundo sem conseguir concluir a obra que tinham em mãos. Mas também houve obras que foram deixadas a meio por o compositor não conseguir dar-lhes concretização satisfatória, ou por se ter desavindo com quem as tinha encomendado ou simplesmente por se ter enfadado delas. Há também obras que nos chegaram incompletas por se terem perdido partes da partitura, mas essas não fazem parte desta lista.

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Seis obras-primas clássicas que ficaram por acabar

A Arte da Fuga BWV 1080, de Bach

Ano: c.1740-50
Estado: Uma das fugas está incompleta, não há indicações de instrumentação e a ordem de execução das várias peças não é clara

Johann Sebastian Bach nunca chegou a especificar a que instrumento ou combinação de instrumentos se destinava A Arte da Fuga (Die Kunst der Fuge), obra em que trabalhou intermitentemente dos últimos anos de vida e que deixou incompleta à data do falecimento, a 28 de Julho de 1750. A obra funciona, nas palavras do musicólogo Marcel Bitsch, como uma “demonstração dos recursos inesgotáveis da escrita contrapontística” e compreende 14 fugas e 4 cânones que têm como ponto de partida um mesmo tema. Uma das peças, a que Bach deu o título “Contrapunctus XIV”, está incompleta e o seu manuscrito contém uma anotação do seu filho Carl Phillipp Emanuel, que indica que aquelas foram as últimas notas escritas pelo pai, antes de falecer, afirmação que é contestada pelos musicólogos: as notas são da mão de J.S. Bach e, como tal, deverão datar, o mais tardar, de 1748-49, pois, a partir de meados de 1749, a cegueira que acometeu o compositor obrigou a que passasse a ditar as suas composições.

Muito se tem discutido qual o(s) instrumento(s) mais apropriado(s) à sua execução e há mesmo quem tenha sugerido que se trataria de um exploração abstracta das possibilidades da fuga e que, como tal, Bach nem previra a sua execução. Sendo a obra de extraordinária riqueza e não faltando músicos de grande talento e inventividade, A Arte da Fuga tem sido alvo de múltiplas leituras, em órgão, cravo, piano, ensemble de violas da gamba, quarteto de cordas, quarteto de flautas, orquestra e até por combinações instrumentais alheias ao universo da música antiga, como quarteto de saxofones, quinteto de metais ou duas guitarras de oito cordas. O “Contrapunctus XIV” costuma ser tocado numa das várias propostas de reconstrução entretanto surgidas, mas também há quem se detenha onde Bach se deteve.

[“Contrapunctus I”, por Davitt Moroney (cravo), ao vivo em 2015]

Grande Missa K.427, de Mozart

Ano: 1782-83
Estado: Kyrie, Gloria e Benedictus completos, faltam partes do Credo e do Sanctus e todo o Agnus Dei.

O musicólogo Alfred Einstein foi quem chamou a atenção para a coincidência: todas as obras que Mozart escreveu para a esposa Constanze ficaram por acabar. Um psicoterapeuta talvez pudesse averiguar as razões por trás dos sucessivos fiascos, mas como não podemos deitar Mozart e Constanze num divã, temos de ficar pelos factos conhecidos.

Em 1781, Mozart mudara-se para Viena e, em 1782, casara-se com Constanze Weber, apesar da oposição do papá Leopold, que permanecera em Salzburg e cujo assentimento contrariado só chegou no dia do casamento. Wolfgang estava tão ansioso por desposar Constanze que fez o voto de compor uma missa para assinalar a primeira visita do casal a Salzburg. A missa foi apresentada na Igreja de S. Pedro, em Salzburg, a 26 de Outubro de 1783, sendo a parte de soprano confiada a Constanze. Ora, o contexto de uma cerimónia litúrgica exclui que a K.427 pudesse ter sido tocada no estado fragmentário em que a conhecemos: ou Mozart chegou a completá-la e, entretanto, houve partes que se extraviaram ou, o que é mais plausível, o compositor só compôs o que hoje conhecemos e terá inserido, em Salzburgo, trechos de missas anteriores para tapar os “buracos” na K.427.

A Missa K.427 costuma ser tocada recorrendo a reconstruções do Credo e do Sanctus, de que existem várias alternativas.

[Kyrie, pelo Monteverdi Choir e The English Baroque Soloists (em instrumentos de época), com direcção de John Eliot Gardiner]

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Requiem K.626, de Mozart

Ano: 1791
Estado: Requiem e Kyrie completos; esboços da Sequentia, desenvolvidos até ao “Confutatis”, incipientes na “Lacrimosa”; faltam Offertorium, Sanctus, Benedictus, Agnus Dei e Communio.

Muitas são as lendas, rumores e ambiguidades em torno dos últimos dias de Mozart, nos últimos meses de 1791, enquanto se esforçava para terminar o Requiem. Parte da aura misteriosa foi criada pela esposa do compositor, Constanze, que fez crer que o Requiem tinha sido encomendado por uma figura misteriosa e que Mozart se convencera de que tinha sido envenenado e que o Requiem se destinaria a assinalar a sua própria morte.

Na verdade, a encomenda tinha sido feita pelo Conde Franz von Walsegg, maçon e compositor amador, para ser tocado no primeiro aniversário do falecimento da sua esposa, a 14 de Fevereiro de 1792. A encomenda tinha, todavia, um lado obscuro, já que Walsegg tinha o hábito de encomendar obras a compositores talentosos e apresentá-las, em sessões privadas no seu castelo de Stuppach, como se fossem de sua autoria. A encomenda foi recebida em meados de Julho, mas as óperas La Clemenza di Tito e A Flauta Mágica impediram Mozart de iniciar o trabalho no Requiem antes da segunda semana de Outubro. Ao contrário do que reza a lenda, Mozart gozou de saúde nas primeiras semanas de trabalho e só a 20 de Novembro se viu forçado a recolher ao leito. A 5 de Dezembro estava morto e Constanze, que precisava desesperadamente de dinheiro, confiou a conclusão da partitura a Joseph Eybler, que após ter feito alguns progressos devolveu a partitura a Constanze.

Quem acabou por fazer o grosso do trabalho foi Franz Xaver Süssmayr (1766-1803), amigo e assistente de Mozart, embora Constanze apresentasse o Requiem a Walsegg – em Dezembro de 1793, bem depois do prazo acertado – como sendo obra exclusiva do marido. Walsegg não terá dado por nada, ou se deu, não reclamou, mas desde o início da década de 1960 que muitas dezenas de musicólogos, considerando a “versão Süssmayr” insatisfatória, têm oferecido as suas próprias reconstruções.

[“Lacrimosa”, na versão de Süssmayr, pelo Collegium Vocale Ghent e Orchestre des Champs-Elysées (em instrumentos de época), com direcção de Philippe Herreweghe (Harmonia Mundi)]

Quarteto de cordas op.103, de Haydn

Ano: 1803
Estado: Andamentos I & II completos.

Habituados aos confortos e facilidades do nosso tempo, é fácil esquecermo-nos de que as gerações que viveram antes de nós enfrentaram vidas bem mais duras. Nos alvores do século XIX a velhice era um fardo bem mais difícil de suportar e os poucos que chegavam a septuagenários eram usualmente afligidos por doenças e achaques que hoje são facilmente curáveis ou remediáveis, mas que então podiam ser gravemente incapacitantes. Em 1799, aos 67 anos, Joseph Haydn (1732-1809) compusera dois superlativos quartetos de cordas, os n.º 66 e 67 de uma produção de extensão e qualidade ímpares. Nesta época os quartetos costumavam ser publicados em grupos de seis ou três e Haydn tivera intenção de juntar um terceiro ao par, que acabou por ser editado, em 1802, pela firma Breitkopf & Härtel como op.77, mas o declínio da sua saúde e a composição da oratória As Estações, da Missa da Criação e da Harmoniemesse impediram-no de o fazer. Só em 1803 pôde iniciar a composição do novo quarteto, mas as forças abandonaram-no definitivamente e, em Abril de 1806, resignou-se a enviar os dois andamentos iniciais à firma Breitkopf & Härtel. Haydn viveria ainda mais três anos, mas não voltaria a compor. Na edição da partitura, publicada como op.103, o editor inclui uns versos de uma canção que Haydn adoptara para o seu cartão de visita: “As minhas forças chegaram ao fim/ Estou velho e fraco”

[I andamento (Andante grazioso), pelo ensemble L’Archibudelli, em instrumentos de época, com Vera Beths e Lucy van Dael (violinos), Jürgen Kussmaul (viola) e Anner Bylsma (violoncelo) (Sony Vivarte)]

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Mysterium, de Scriabin

Ano: 1903-15
Estado: 72 páginas de esboços fragmentários e 1000 versos, para o prelúdio.

Tal como a Universe Symphony, em que Charles Ives começou a trabalhar pela mesma altura, a ambição desmedida de Mysterium já continha em si a semente do fiasco. A megalomania do projecto está bem patente na descrição feita por Faubion Bowers, o primeiro biógrafo de Aleksandr Scriabin (1872-1915), com base nas notas do compositor e no testemunho de amigos deste: “O público será convocado de todos os cantos do mundo por sinos suspensos das nuvens. A cerimónia terá lugar num templo a construir na Índia [...] O público dispor-se-ia em arquibancadas do outro lado da água. [...] No centro do palco, estaria Scriabin, sentado ao piano, rodeado por falanges de instrumentistas, cantores e bailarinos [...] A coreografia incluiria olhares, expressões, movimentos dos olhos, toques com as mãos” e haveria “perfumes agradáveis mas também os fumos acres do olíbano e da mirra [...]. Luzes, fogos e efeitos luminosos em constante mutação envolveriam os executantes e o público”. O objectivo era preparar “as pessoas para a sua dissolução no êxtase”. Esta portentoso espectáculo que fundiria todas as artes – música, poesia, bailado, imagens, odores e mirabolantes efeitos especiais – duraria sete dias e desencadearia o fim do mundo e o início de um novo ciclo cósmico, uma renovação apocalíptica em que a humanidade seria substituída por “seres mais nobres” e em que Scriabin desempenharia o papel de Messias: “Não morrerei. Sufocarei em êxtase após o Mysterium”.

Deste magno evento multimédia, que Scriabin começou a conceber em 1903, apenas foram compostos, em 1912-13, esboços para “L’acte préalable”, um prelúdio à obra propriamente dita, até porque o compositor gastou imenso tempo a magicar nos detalhes da estreia, que teria lugar num templo (a construir expressamente para o efeito) no sopé dos Himalaias. Scriabin morreu em 1915, aos 43 anos, não sufocado em êxtase, mas de uma infecção generalizada, talvez com origem numa picada de mosquito.

O compositor Aleksandr Nemtin (1936-1999) gastou 26 anos em torno dos esboços para “L’acte préalable” para preparar uma reconstrução, necessariamente especulativa, a que foi dado o título de Preparação para o Mistério Final, que se divide em “Universo”, “Humanidade” e “Transfiguração”, dura três horas e requer, além de coro, piano solista, órgão e grande orquestra, um “teclado de luzes”.

[Lent: Impérieux de “Universe”, I parte de Preparação para o Mistério Final, pela Deutsches Symphonie-Orchester Berlin, com direcção de Vladimir Ashkenazy (Decca)]

Concerto para viola Sz.120, de Bartók

Ano: 1945
Estado: esboços desenvolvidos de todos os andamentos

O exílio de Béla Bartók nos EUA não foi muito feliz – o compositor húngaro não conseguiu adaptar-se ao estilo de vida americano – e a sua produção ressentiu-se disso. A sua saúde também não ajudou, pois começou a degradar-se a partir de 1940 e em 1944 foi diagnosticado com leucemia. Os dois concertos que empreendeu em 1945 ficaram ambos incompletos, ainda que em estádios diversos: o Concerto para piano n.º 3 ficou com apenas 14 compassos por orquestrar, mas o Concerto para viola, que lhe fora encomendado pelo violetista britânico William Primrose ficou integralmente por orquestrar. Ambas as partituras foram completadas por Tibor Serly, discípulo e amigo do compositor. O concerto para viola foi estreado por Primrose em 1949, em Minneapolis, com Antal Dorati na direcção.

[I andamento, por William Primrose – o comandatário da obra – e a Orquestra do Concertgebouw, com direcção de Otto Klemperer, ao vivo no Concertgebouw, Amesterdão, Janeiro de 1951]

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