Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma obra que se recusa a perder a relevância e inventividade.
É de manhã e por estas bandas ainda só se tomou o primeiro café, está difícil pensar. Mas, do outro lado do telemóvel, Tó Trips parece completamente desperto. Fala depressa, está atarefado, “a preparar uma banda sonora, a fazer promoção, também em ensaios com os Xutos [& Pontapés]. É muita coisa ao mesmo tempo”. Já para não falar de Club Makumba, a sua banda com João Doce e os Gonçalos Leonardo e Prazeres. Desde Dezembro de 2022, os quatro têm partilhado o palco do Musicbox com diferentes artistas – o acordeonista João Barradas foi o primeiro; o músico, produtor e DJ Moullinex, o segundo; e João Gomes será o terceiro e último convidado deste ciclo, a 14 de Abril. E no início do ano gravaram “umas dez faixas do próximo disco” nos estúdios ARDA, no Porto. Deve sair daqui a uns meses. Estamos curiosos por saber o que vem aí, mas por agora não é disso que queremos falar.
O guitarrista até há pouco tempo dos Dead Combo, depois de passagens fulgurantes pelos Lulu Blind e pelos lendários Santa Maria, Gasolina em Teu Ventre! nos 90s, acaba de editar pela Revolve mais um disco, Popular Jaguar, o terceiro em nome próprio; e um livro de “memórias, fotografias e textos” de sua autoria, intitulado Ínfimas Coisas como uma das novas canções. Ao longo das suas quase 200 páginas, faz o sumário possível das viagens (“tanto em concertos como em férias”) e histórias de uma vida repleta delas, que já valeu por muitas. Diz que “não é escritor”, apenas músico e designer, todavia está orgulhoso do resultado e fala da edição com orgulho. “Sou suspeito, mas fiquei mesmo contente com o raio do livro”. O entusiasmo é tão contagiante que a entrevista é virada do avesso. Os concertos de apresentação do novo álbum – este domingo, 12, no Auditório de Espinho; na sexta-feira, 17, na Culturgest (Lisboa); e a 7 de Maio na Casa da Música (Porto) – podem esperar. Primeiro, queremos falar de Ínfimas Coisas.
Porque é que decidiste editar um livro?
Sabes que não sou gajo de olhar para trás, para o que fiz ou deixei de fazer. Mas na altura da pandemia caiu-me tudo em cima. Foram os confinamentos, foi o final dos Dead Combo... Isso obrigou-me a pensar no que andava a fazer e no que tinha ficado pelo caminho; a olhar para as coisas que tinha guardadas; a organizar milhares de fotografias dos sítios aonde fui.
Desde quando?
Desde os anos 80. Este livro e este disco têm um lado quase biográfico, mas também há aqui uma vontade de partir para outra. De começar uma nova vida, ao fim e ao cabo. Pós-pandemia e pós-desaparecimento do Pedro [Gonçalves] e dos Dead Combo.
Por acaso, no Popular Jaguar, parece ouvir-se um pouco de tudo o que foste fazendo e por que te foste interessando ao longo dos anos. Escuto o fado, a tensão do rock, a tua paixão pelas músicas do Mediterrâneo…
É verdade. É quase uma reunião de coisas que eu fiz, ou do caminho que tenho percorrido. Como te digo, é um disco muito autobiográfico. Agora estou por minha conta, e esta foi a maneira que arranjei para arrumar as coisas que ficaram para trás e poder seguir em frente.
Estás por tua conta, mas não estás sozinho. Aliás, tens uma série de convidados no disco: o António Quintino, a Sandra Batista, o Gonçalo Prazeres, a Helena Espvall...
Sim. Porque senti a necessidade de ter mais alguém a tocar, a gravar uns contrabaixos… Chamei o António Quintino porque já tinha tocado comigo nos Dead Combo e gosto muito dele. Também já tinha prometido à Helena que íamos tocar um dia, e como era uma pessoa mais experimental, mais ligada à música de improvisação, convidei-a para que as coisas não ficassem muito direitinhas. Sabes que estou a tocar com eles ao vivo, em trio, não é?
Sei. Só não percebi se, ao vivo, reproduzem as canções tal e qual elas estão no disco. Ou improvisam um bocado?
Sempre. Já desde os Dead Combo que gosto disso. De deixar janelas abertas para as pessoas se pirarem. Ou seja, vamos tocar os temas como eles são, mas há partes mais abertas para a Helena desbundar, e para o Quintino desbundar.
Quando é que começaste a trabalhar nestas canções? Durante a pandemia?
Muito antes. Há coisas que foram feitas para filmes, outras para danças, outras para exposições… Isto começou tudo com a história que inspirou a “Península dos Índios”, com um gajo em França, num hotel, a dizer que festa só mesmo na península dos índios, depois dos Pirinéus. Essa frase foi a alavanca para começar a escrever o livro e a preparar o disco, que até era para se chamar Península dos Índios. Depois é que ficou Popular Jaguar.
Conta lá melhor essa história.
É uma história que está no livro. Uma vez fui a Cannes com um colega, o Zé, e ficámos num hotel de velhos, para pessoal com dinheiro, mas que não ficava mesmo em Cannes, era uns quilómetros ao lado. Fomos ao festival de publicidade de Cannes e meteram-nos lá. Uma noite chegámos com uma grande bebedeira ao hotel, já depois das duas e tal da manhã, e perguntámos ao gajo da recepção se ainda havia alguma coisa aberta àquela hora. O francês responde que “festa a esta hora só depois dos Pirinéus, na península dos índios”. E eu digo assim: “Foda-se, olha-me para este gajo…” Então eu e o Zé vestimos os fatos de banho e fomos mandar bombas para a piscinas. Fomos corridos de lá [risos].
A sério?
Eh pá, sim. Porque acordámos aquela velharia toda.
Também estavam a pedi-las.
Pois estávamos. A mandar bombas na piscina às tantas da manhã… Queríamos o quê?
Não, os gajos do hotel é que estavam a pedi-las.
Os gajos nem queriam acreditar no que lhes estava a acontecer. Os índios tinham chegado. E esta história foi a alavanca para começar a escrever o livro. Ou pelo menos a pensar nele.
Isso passa-se quando? Para ainda trabalhares em publicidade já há-de ter sido há uns anos.
Foi. Em 1995, acho.
No tempo dos Lulu Blind?
Exactamente.
Tu já tocas desde o final dos anos 80 e passaste por uma série de bandas marcantes. Santa Maria, Gasolina em Teu Ventre!, Lulu Blind, dos Dead Combo nem se fala... Porém, és uma figura pouco mediática, que prefere estar na sombra. Porquê?
Cultivo activamente isso. Gosto que as coisas sejam assim. Por isso é que o nome [do disco] é Popular Jaguar. Sou um gajo que até é conhecido, mas está sempre na sombra. O nome vem daí. E não é por acaso que as fotos [promocionais, tiradas pelo também músico] Kid Richards são também bué na sombra.
Com a cara quase tapada.
Nalgumas vê-se a cara, mas sim. Porque, ao fim e ao cabo, o que é que interessa o gajo? O que interessa é a música, é aquilo que ele faz.
E tu neste momento fazes mesmo muitas coisas. Não sei como é que consegues.
É um bocado difícil, porque não sou um gajo muito organizado. E ter tantas coisas para fazer perturba-me um bocado. Mas tenho uma certa dificuldade em dizer que não aos convites. Acho que a única coisa que me safa no meio deste caos todo é ter uma família e ter a escola da publicidade. Mesmo assim, às vezes, fico um bocado assustado.
Teres trabalhado em publicidade ajuda-te a lidar com o excesso de trabalho?
Ajuda a ser pragmático na hora de arranjar soluções. Aprendi a não perder muito tempo à espera que venha a inspiração. Porque em publicidade os prazos são sempre para amanhã… Aliás, quando pedem uma coisa nem é para amanhã – é mesmo para ontem. Então habituei-me a isso, a ter deadlines e a ter de me organizar. Ou pelo menos a tentar.
Imagino que um dos convites a que não conseguiste dizer que não tenha sido o dos Xutos & Pontapés, com quem tens estado a tocar o Circo de Feras ao vivo já desde o ano passado. Como é que entras ali?
Eles convidaram-me. Na altura fiquei um bocado assustado, e pedi-lhes algum tempo para pensar. É claro que fiquei muito orgulhoso pelo convite, mas tinha algumas reservas. Imagina que o pessoal me via ali e pensava: “olha este gajo agora aqui armado em Zé”. Mas a verdade é que os Xutos estão desde sempre na minha vida. O primeiro concerto a que fui foi a última Febre de Sábado de Manhã, no Jardim Zoológico. Saltei o muro mais os meus amigos, porque não tínhamos dinheiro na altura para ir vê-los. Também me lembro de fugir de casa para os ver no Rock Rendez-vous. E depois o Zé [Pedro] produz o primeiro disco dos Lulu Blind, gravámos outro disco no Johnny Guitar [o bar de Zé Pedro, nos 90s], saíamos à noite, tivemos uma banda... Pronto, éramos amigos. Isto para além de todo o trabalho gráfico que já fiz para os Xutos. Então achei que seria malcriado da minha parte não aceitar esse convite. Mas disse-lhes logo que o meu futuro não é os Xutos.
Não vos imaginas mesmo a fazerem nada juntos
Acho que é para fazer estes concertos, esta tour do Circo de Feras, e depois os Xutos têm o seu caminho para andar. Têm pelo menos que pensar no próximo disco, sem o Zé Pedro.
Podias fazer esse caminho com eles.
Digo isto com todo o respeito, e desejo-lhes tudo de bom, mas acho mesmo que não é por aí. Eles têm de seguir o caminho deles e eu o meu.
Onde achas que esse caminho te vai levar?
Onde precisar de ir. A única coisa que sei é que vou tocar guitarra. Hei-de tocar guitarra até me ir embora. Gostava de ter também tempo para tentar coisas mais experimentais, até mais pesadas, mas não sei se vai dar. Não sou gajo de fazer muitos planos.
Culturgest. Sex 17. 21.00. 15€.