Não foi preciso estar com muita atenção para perceber que nos últimos anos a cena gastronómica portuense mudou. E muito. E no meio de nascimentos quase espontâneos de dezenas de restaurantes e espaços de restauração, bons e maus, todos os meses, há alguns que desafiam a norma e chegam a bom porto pelo caminho mais arriscado – tal e qual os salmões do Norte que sobem os rios contra a corrente e proporcionam, a quem vê, um bonito espectáculo da natureza.
É a esses restaurantes que mais atenção gostamos de dar. Não só porque exploram novos produtos ou técnicas, mas porque nos divertem à mesa, nos dão experiências e nos criam memórias. E comer, nos dias que correm, é muito feito disso. Assim foi no Apego, um restaurante no topo da Rua de Santa Catarina, na parte mais deserta daquela que é a artéria mais movimentada da cidade.
Obviamente que um trocadilho com o nome não podia faltar, mas a verdade é uma, volta e meia criamos apego às coisas e é chato vê-las partir. Por isso, subam um pouco mais a rua. Afastem-se dos turistas, das compras, dos homens-estátua e entrem no bonito espaço que Aurora Goy, a chef de 29 anos, filha de mãe portuguesa e pai francês, decorou para nos receber. As paredes em pedra, as mesas em madeira, o sofá corrido, os tons quentes e o serviço atencioso. É fácil sentirmo-nos bem por lá, especialmente se a isto juntarmos uma carta curta e um menu de degustação de seis pratos, bonitos e bem-feitos, muito em conta (30€). Não digam que não vos avisámos. Não chorem depois.
Estas cinco estrelas não são perfeitas, mas são merecidas. Houve coisas muito boas e outras que não me deixaram tão entusiasmado, mas Aurora, sozinha na cozinha, não teve medo. Saiu tudo bem, sem demoras e com amor. O mesmo se passou com o Mito, do chef Pedro Braga, ou com o restaurante do chef Pedro Limão, com o mesmo nome, que receberam quatro estrelas aquando das visitas dos críticos desta revista, mas que pelo arrojo e atrevimento mereciam umas cinco também. Os tais salmões que sobem os rios.
Mas vamos ao que interessa. 1) O couvert. Composto por um bom pão com acidez onde se barrou uma manteiga saborosa aromatizada com sálvia. Ao lado, uns gressinos de aspecto caseiro, salgadinhos e densos, e um prato com finas tiras de cenoura adocicadas com pimenta rosa e especiarias várias. Muito fresco e agradável.
2) As entradas. A primeira, mais untuosa e aconchegante, sabia a Outono. Era como se estivesse a mastigar o regresso às aulas, a queda das folhas e o São Martinho numa colherada só, que juntava um puré de castanha, castanhas assadas crocantes, uma gema de ovo morna cozinhada a baixa temperatura, queijo de cabra ralado na hora e dióspiro. Sim, o doce a rir-se na nossa cara, a baralhar-nos os sentidos e a fazer todo o sentido. Ajudava a que o prato não se tornasse monótono na boca e, em contrapartida, dava-lhe alegria. Tanto na cor como no sabor.
Um fresquíssimo filete de cavala acompanhado por uma maionese de lima, pinhões tostados e cebola cozinhada num ponto intermédio – nem crua, nem caramelizada, translúcida, perfeita –, uma viagem entre o Natal e as férias de Verão, foi um dos pratos vencedores da noite. A torta que se seguiu, uma terrine de carnes de caça, com notória influência da cozinha francesa, estava bem executada. Não era tão tcharam! quanto as outras entradas, mas há sempre um público mais clássico a quem também é preciso agradar. Os pickles de rabanete e beterraba que a acompanhavam estavam bons, um saboroso toque terreno.
3) Depois, os pratos principais. Um lombo de peixe-espada enrolado em repolho braseado com batata doce ganhou pontos por causa do molho: um caldo de peixe divinal, com cardamomo, raspas de tangerina, pimenta e, mon Dieu, sabe-se lá mais o quê. Era de se comer à colher. A rematar os salgados, chegou-nos à mesa um pato rosado, terno, no ponto, sem dúvida o elemento que mais sobressaiu neste conjunto, um tanto desconjuntado, composto por um puré de grão e outro de abóbora banais, pelo sabor terreno das acelgas e pelo doce dos marmelos. Estes, infelizmente, não tiveram tanto sucesso como o dióspiro.
4) Por fim, as sobremesas. Um gelado de cogumelos boleto com avelã, que deveria ter sido retirado uns minutos antes do frio (estava geladíssimo), pecava pela pouca surpresa. Muito moído, era como se estivéssemos a comer granola mole ao pequeno-almoço. Felizmente, foi superado pelo arroz cremoso com natas, cardamomo, pêras doces e biscoito salgado onde dava vontade de viver e reincarnar numa nova vida. E assim, num bonito jantar, numa rua meia deserta, vi o nascer da Aurora.